terça-feira, 4 de outubro de 2016

Descrições fenomenológicas 2. A viúva

Gerardo Rueda - Alcalá (1960)

Negro, o véu cai-lhe sobre os ombros nus. O vestido, também preto, bordejado a branco no decote, acentua a tristeza que lhe escorre dos olhos, tão escuros quanto a noite, e inunda o rosto, marcado por um nariz afilado, cortante, que encima, quase ameaçador, a boca. O lábio superior fino, a lembrar longas asceses, contrasta com a generosidade do inferior, tocado por um leve ensejo de ser beijado, de se entregar ardoroso a outros lábios. Esta diferença labial, tão comum, deixa antever o conflito, entre a frieza meditativa e o ardor vital que se esconde na alma. O rosto, apesar da tristeza lutuosa que aparenta, não o consegue disfarçar. Os seios não são generosos. Pelo contrário, o vestido deixa percebê-los contidos, um novo disfarce, também comum em tantas mulheres. A melancolia da sua imagem faz adivinhar um exercício contínuo para limitar uma sensualidade secreta que, encontrando quem a saiba detonar, se torna, apesar de silenciosa, transbordante. A mão direita repousa sobre o ventre; a esquerda, pousada nas costas de uma cadeira, segura um lenço branco. Negro e branco. E tudo nela é contraste, conflito, contradição. Leva o lenço ao rosto, enxuga uma lágrima irreprimida, dá uns passos em frente e sai, batendo a porta com indisfarçado descuido.

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