quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Descrições fenomenológicas 7. Uma carta

Arden Quin - Forme Noire II (1942)

Os olhos negros, toldados por sobrancelhas espessas e não tratadas, têm, à superfície, uma vida mortiça, embora, se observados com atenção, ainda guardem, bem ao fundo, um brilho, talvez o resto de uma esperança. O rosto ovalado, quase inexpressivo, é cortado por um nariz não excessivamente grande, que se abre em duas narinas regulares e bem marcadas. A boca, surpreendentemente, contrasta com a expressão ascética que se observa ao primeiro olhar. Dois lábios, não muito grandes, onde não há sinal de palidez e longas renúncias, entreabrem-se, carnudos e bem recortados, em vermelho vivo, deixando entrever dentes brancos e regulares. A boca, assim aberta, parece, porém, denunciar uma dificuldade de respiração, como se as narinas, apesar da regularidade, fossem incapazes de cumprir a função e assegurar o comércio do ar entre os pulmões e o mundo. Este contraste, entre a sensualidade da boca e a quase imaterialidade do rosto, parece ser decidido pelos cabelos, modestamente penteados, apenas um risco ao meio, fronteira a partir do qual caem para ambos os lados, quase tapando as orelhas, para se esconderem, enlaçados, atrás das costas. O pescoço não é longo e a parte inferior está coberta por uma gola negra que sobe do vestido, também ele negro e destituído de qualquer artifício, quase uma bata. Enquanto o braço esquerdo cai ao longo do corpo, o direito flecte-se e mostra quatro dedos de uma mão delicada, à altura do seio, que segura, com leveza, uma carta, a esperança que brilha no fundo dos olhos, arrastada pelo desejo insinuado na boca.

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