quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Descrições fenomenológicas 14. Um recanto da cidade

Sean Scully - Cuarteto (2000)

Não há pássaros. O céu vacila entre o azul claro e um cinza ténue. Nuvens brancas, farrapos irrequietos arrancados a uma planície de algodão, deslizam devagar, levados por um vento caprichoso e rodopiante. Alguém exclama: parece um arquipélago. A voz dilui-se e a luz desce entrecortada pelo troar dos carros. Ouvem-se buzinas, um concerto furioso e transbordante de ódio, mas logo se calam para, daí a pouco, novos intérpretes se entregarem a outra exibição. Olha-se para cima e vêem-se dois prédios, enormes no seu desamparo, que parecem desenhar um ângulo de 90o. Uma ilusão de óptica de quem espreita de longe e já não percebe que cada um se instala numa linha diferente e que ambas correm paralelas em busca de um infinito onde, exauridas pela viagem eterna, se encontrem e entrelacem para que o ângulo agora entrevisto se torne real. O mais próximo tem uma cor de terra saibrosa. Enormes e fundas varandas rasgam a frontaria. Há mesas e cadeiras, mas não se vê ninguém, apenas um cão, numa das varandas, dorme ao pé de um vaso. Noutra, dois gatos, talvez siameses, desafiam-se, ameaçam-se, correm um atrás do outro e, é-se levado a imaginar, olham-se faiscantes, terríveis no repto. Depois, repetem o ciclo e percebe-se que é apenas um ensaio de uma peça para cuja estreia ainda falta muito. O outro prédio é um jogo de fachadas vítreas azuis e brancas, um edifício de escritórios, por certo, de onde a privacidade parece ter sido banida pela transparência das paredes. Movem-se sombras, fantasmas acorrentados nestas novas cavernas, onde a luz nunca se apaga. Em cada uma daquelas salas desenrola-se um drama. Projectam-se negócios, desenham-se peças, advogados discutem com os seus clientes, uma mulher dorme, a cabeça caída sobre o tampo da secretária. Por vezes, alguém se chega à parede de vidro e olha para a rua. Depois o corpo transforma-se em sombra e flutua ao fundo da divisão. Por cima do prédio saibroso, uma grua estende um braço gigantesco. O cão acorda e ladra. Os gatos suspendem a corrida de orelhas espetadas. Ouve-se uma sirene e uma ambulância atravessa a rua e desaparece ao longe. No céu vacilante, não há pássaros.

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