terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Descrições fenomenológicas 16. O bar

Howard Hodgkin - After Morandi (1989-94)

Os ladrilhos quadrados brancos e vermelhos, com dissimuladas fantasias abstractas, recebem a luz vinda da porta do fundo, uma luminosidade que se mistura com a que entra pelas grandes vidraças translúcidas da parede lateral. À porta, cruzam-se um polícia, que se prepara para sair, impecável no aprumo do uniforme castanho escuro, e um homem, de idade imprecisa, com um chapéu de aba curta, como aqueles que se usaram há décadas atrás e, nos dias de hoje, ainda nos fazem lembrar um detective de uma série negra norte-americana. Sobre o fato, para confirmar a sensação detectivesca, o homem veste uma gabardina azul-cinza, o que não deixa de fazer sorrir perante tal incongruência, pois o dia está ensolarado e no céu não se pressentem nuvens.  Ao passar um pelo outro, os homens mal se olham e não há entre eles qualquer cumprimento. A luz diminui, quando a porta se fecha. O homem da gabardina senta-se numa mesa e olha. Ao balcão, do lado de fora, duas raparigas, na casa dos vinte e poucos anos, vestidas com saias brancas, curtas, deixam ver longas pernas, terminadas por sapatos de salto alto, que prolongam a sensação de que aquelas pernas, na sua elegância, não têm fim. As ancas e as nádegas de ambas impregnam os corpos de uma ondulação que não pára de atrair a avidez dos olhos masculinos. Conversam com os barmans, uma conversa sussurrada, entrecortada por risos sardónicos e rápidos olhares para a sala. Tudo nelas, o modo como se encostam ao balcão, o olhar que dirigem sobre as mesas, as palavras que trocam, denota um longo hábito e, apesar da aparente jovialidade, há nos seus rostos uma sensação de secura, como se, apesar da idade, não fossem mais que o restolho abandonado de uma seara ceifada há muito. Uma terceira rapariga, vestida de vermelho, talvez mais nova, coberta apenas por um pequena saia e um top, oferece ao olhar o ventre despido, onde ainda não há marcas do tempo. Dirige-se para uma mesa, ajeita os cabelos com a mão direita e senta-se, ao lado do homem que persiste em não abandonar a gabardina e o chapéu. Ele olha-a e escuta-a. Permanece silencioso. Sobre o rumor das conversas, ouve-se o leve zunido dos aparelhos de ar condicionado. Junto à parede das janelas, a meio da sala, um homem negro, coberto até ao peito, por um biombo de madeira, espreita o ambiente, como se estivesse ali de vigia, à espera de que aconteça alguma coisa que necessite da sua intervenção. A um canto, de pé, um homem na casa dos cinquenta anos, vestido de fato castanho, com gravata vermelha sobre camisa branca, sorve um enorme charuto, que segura entre dois dedos curtos e grossos. A cabeça, sem cabelo, encima uns olhos frios implantados num rosto quase esférico, com dobra no pescoço que se reflecte na proeminência da barriga, que ele não tenta esconder. Não dirige um olhar para as raparigas. Preocupa-se apenas com o charuto. Por vezes, fica a olhar as espirais que se evolam para se perderem na nuvem de fumo que paira na sala, mas logo reconduz os olhos e fá-los pairar no vazio, como se ali não se passasse nada e ele não estivesse ali.

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