sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Interregno

Lorenzo Costa, Birth of Jesus, 1490

Também o Kyrie Eleison suspende a sua actividade neste período de festas. Voltará em Janeiro. A todos um Bom Natal e um Feliz Ano Novo.

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Advento e Natal

A minha crónica natalícia em A Barca.

As nossas sociedades secularizadas, mesmo se compostas por pessoas formalmente cristãs, perderam há muito qualquer relação profunda com a religião. Observemos o Natal. Este, devido à sua transformação numa grande festa pagã, em tudo contrária à frugalidade do presépio, é um caso perdido. Para compreender essa perda, vale a pena perscrutar aquilo que as sociedades tradicionalmente cristãs abandonaram no processo de secularização. Ligado ao Natal está o Advento. O interessante desse tempo de preparação do Natal é o seu conjunto de valores, os quais todos nós, crentes, agnósticos e ateus, podemos partilhar. Sublinho três. O arrependimento, a fraternidade e a paz. Nenhum deles exige que sejamos crentes.

A desvalorização da contrição cristã, mesmo pelos cristãos, é algo que nem um ateu deve celebrar. O arrependimento está ligado à falibilidade humana, ao reconhecimento dos nossos limites, à tomada de consciência do mal que fizemos aos outros. O arrependimento é um trabalho de contínua educação moral que o sujeito faz sobre si mesmo. Haver, no ano, épocas em que ele é solicitado significa que a sua importância está viva. Hoje em dia, o arrependimento é visto apenas como um problema da consciência individual, no melhor dos casos, ou como uma fraqueza que se deve evitar. Tornou-se irrelevante, socialmente.

A fraternidade, por seu lado, é fundamental em qualquer sociedade e, por maioria de razão, em sociedades concorrenciais. Estas estão organizadas para que, a todos os níveis, os indivíduos concorram uns com os outros. Esta concorrência tem méritos inegáveis. Fornece melhores produtos, torna as pessoas mais capazes, melhora as próprias instituições. Tem, todavia, um perigo. A sua natureza adversarial pode conduzir à ruptura dos laços comunitários. A fraternidade lembra-nos que pertencemos todos à mesma espécie, que, para além de concorrentes, somos irmãos e, por isso, temos um dever de cuidado mútuo e de manutenção entre nós da paz, essa outra exigência do Advento.

A secularização das sociedades permitiu-lhes separar a salvação da gestão da vida civil, o que foi uma conquista civilizacional. Mas, ao olharmos para a vida de hoje, não deixa de haver um sentimento de perda. A religião trazia com ela um conjunto de valores e de tempos onde eles se tornavam manifestos e de exercício obrigatório. De certa maneira, mesmo que a salvação fosse uma ilusão, as comunidades saíam fortalecidas. O nosso egoísmo natural era confrontado e posto em cheque. Isso acabou, como todos sabemos. Por que razão, sem Advento, haveria de haver um Natal que não fosse um exercício risível de ostentação?

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Ensaios sobre a luz (20)

Myron Wood, Stone, 1980 (via)

Do chão, iluminada, nasce uma pedra que, perdida e quase póstuma, espera a noite para regressar à morosa moradia do sombrio e sonâmbulo silêncio.

terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Êxodos e errâncias

Marc Chagall, Êxodo, 1952-66

Mais de 350 anos da chamada Paz de Vestefália tornaram, para nós Europeus, a territorialidade e a soberania, a que posteriormente se adicionou o jogo da cidadania com as suas regras de inclusão e de exclusão, como o modo natural do existir humano. A cada grupo o seu território e as suas leis. E esse longo hábito social e político tornou-nos cegos para a realidade da espécie humana. A errância pelo mundo e o êxodo contínuo de povos e grupos alargados de indivíduos são pulsões tão fortes que não reconhecem os diques que a ordem jurídica trazida à Europa, e através dela ao mundo, pela Paz de Vestefália quer impor à realidade.

Aquilo que assistimos na Europa com a chegada contínua de imigrantes e a eleição, em diversos países europeus, de governantes com programas para liquidar a chegada de migrantes e, se possível, expulsar os que já lá estão é apenas a manifestação do conflito entre a pulsão natural da espécie humana para o êxodo e a artificialidade cultural e jurídica da territorialização das soberanias. No mundo ideal nascido com a Paz de Vestefália, nós teríamos o nosso território e as nossas regras e vós, os outros, o vosso território e as vossas regras. A realidade, porém, é que as fronteiras jurídicas são construções frágeis perante o apelo constante ao êxodo que anima a espécie humana, como se o nosso lugar fosse sempre um outro no qual não estamos.

segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Um programa político

Hans Zatzka - At the Swan Lake

Olhamos a pintura de Hans Zatzka e facilmente encontramos nela uma imagem, por certo estereotipada, da Áustria. Quem leu Thomas Bernhard tem, contudo, outra imagem da Áustria. O escritor via sob o véu da social democracia e do catolicismo austríacos algo de muito tenebroso, tenebroso que foi o objecto da sua obra. E é esse tenebroso que explicará o novo governo austríaco. Não apenas pela extrema-direita ter voltado, mais uma vez, ao poder, mas porque as três grandes pastas políticas lhe terem sido entregues: Negócios Estrangeiros, Defesa e Interior. Uma economia liberal e uma política musculada. Eis todo um programa político. A Áustria nunca foi um conto de fadas.

domingo, 17 de dezembro de 2017

Micropoemas - Mármore 4

Ben Kerckx, Paisagem de pedreira de mármore de Carrara, 2007

4. Da terra

Da terra,
a solidão do monte.

Do mármore,
um deus no horizonte.

(Micropoemas, 1977/78 e 89)

sábado, 16 de dezembro de 2017

Ensaios sobre a luz (19)

Herman Leonard, Dancer-Choreographer Martha Graham, Undated

De súbito, da cintilação de uma estrela nascem mãos, e o corpo, leve e luminoso, fulgura e ergue-se da penumbra, onde, por instantes, levita para, agraciado, pousar em graça e luz.

sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Há-de vir um Natal

A minha crónica no Jornal Torrejano.

Cheguei àquela idade em que os versos, de David Mourão-Ferreira, “Há-de vir um Natal e será o primeiro / em que se veja à mesa o meu lugar vazio” começam não só a fazer sentido, demasiado sentido, como crescem espectrais sobre mim. Há muitas pessoas que não cultivam o Natal ou, mesmo, que o desprezam. Não me incluo nesse grupo. O meu culto do Natal foi-me trazido por um não crente, o meu pai. E nunca passou. Nesse culto, eduquei os meus filhos, e espero que eles eduquem os meus netos. Há uma coisa, porém, que se alterou radicalmente. Antigamente, o Natal era marcado pelas presenças. Agora, pelas ausências. E com o passar vertiginoso dos Natais, o meu lugar vazio à mesa está cada vez mais próximo.

Ora, no Natal, o doloroso não é o sentimento desse dia em que não estaremos já presentes, nem o dia em que não haverá ninguém na terra que de nós se recorde. Se olho para esse facto póstumo, nada nele me comove a não ser que outros, devido à minha ausência, se tornarão, para mim, ausentes. Doloroso não é perdermo-nos a nós, mas é perdermo-nos daqueles que mais amamos. O Natal surge assim, na sua plenitude, como uma celebração da presença. Que isso tenha sido sublinhado por um mito, onde se narra que nascido do seio virginal de uma mulher o filho de Deus se tornou presente no mundo, é irrelevante. Podemos dizer que o filho de Deus veio ao mundo para que nós, pobres mortais, possamos celebrar a vida e a precariedade da presença dos que aqui estão.

Quando na mesa de Natal começa a haver ausências, percebemos que há alguma coisa errada na exuberância que tomou conta da quadra festiva. O excesso de luzes pelas ruas, o turbilhão comercial que sobre nós desaba, a necessidade de presentear, no excesso que as nossas sociedades exigem, os próximos, tudo isso surge como um véu para ocultar a realidade. E a realidade é a da fugacidade da nossa presença sobre a terra, a fugacidade da presença dos que amamos.

Este Natal mundano e mercantil, ah o velho fetiche da mercadoria, aquele que nos cabe viver no tempo presente, é não apenas um adversário poderoso desse outro Natal, mas um inimigo terrível e sem complacência. O Natal do mito fala-nos da presença para sublinhar que mesmos os que deixaram o seu lugar vazio ainda fazem parte de nós e da pequena comunidade que se reúne à mesa. O Natal da realidade de hoje é um exercício falso de alegria cuja finalidade é esquecermos o que nunca deveremos esquecer. Sim, eu sei: “Há-de vir um Natal e será o primeiro / em que não viva já ninguém meu conhecido”.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Credo quia absurdum

Raymond Daussy - Icarus flight (1948)

Talvez um dia destes fale sobre Tertuliano. Tudo é possível. Hoje, porém, fico-me pela frase latina Credo quia absurdum,  Creio porque é absurdo. O que me interessa não é a polémica religiosa entre o fideísmo e a ortodoxia, tão pouco o desafio que ela apresenta à razão filosófica. A frase de Tertuliano é um óptimo guia para determinar a verdade dos acontecimento políticos de hoje em dia. Há tempos, muito se falou – por exemplo, na sequência do Brexit ou da eleição de Trump – numa era da pós-verdade. Erro de perspectiva. A nova era não nega a verdade, diz-nos apenas que o verdadeiro é absurdo. As pessoas lamentam-se de que, em política, não sabem o que acreditar e em quem acreditar. A solução é fácil: quanto mais absurdo mais digno de ser considerado verdade. Um acontecimento é absurdo, logo é verdadeiro. Um personagem político é absurdo, logo é digno de crédito. Qualquer argumento político que se possa reduzir ao absurdo deve ser considerado válido. Tertuliano, na verdade, era um visionário. Da longínqua Cartago dos século II e III da nossa era, ele olhou para o futuro e compreendeu a essência dos nossos dias: Credo quia absurdum.

terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Ensaios sobre a luz (18)

Francisco Mora Carbonell  - A la cita, Spain, 1935

Sob a luz que rasga as trevas, o amante caminha inquieto e sôfrego para a sofreguidão dos braços que a amada na inquietude da espera lhe estende.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Micropoemas - Mármore 3

Cascatas de calcário na Turquia, Egeu

3. Calcário

Calcário,
cidade sem fim.

Brancura,
morte a sonhar-se em mim.

(Micropoemas, 1977/78 e 89)

domingo, 10 de dezembro de 2017

Alma Pátria - 40: Francisco José - Olhos Castanhos



Este era também um dos "cromos" que não poderia faltar nesta "colecção" de Alma Pátria. Temos a reprodução da edição de Olhos Castanhos em 78 rpm, a primeira gravação, efectuada pela etiqueta Estoril. Foi graças ao blogue IÉ-IÉ que descobri que Francisco José é irmão do cientista Galopim de Carvalho, esse mesmo, o dos dinossauros. Olhos Castanhos é uma magnífica canção, talvez a mais conhecida de Francisco José. Talvez fosse mais indicado uma outra, Guitarra Toca Baixinho, mais de acordo com o espírito da rubrica. Mas fiquemos pela taxonomia dos olhos, que não deixa de ser um catálogo de fidelidades e traições. Se não tiver olhos castanhos, paciência. Acontece aos melhores.

sábado, 9 de dezembro de 2017

Ensaios sobre a luz (17)

Dennis Stock, Venice Beach Rock Festival. California, 1968

A luz do Verão nasce no centro do mar e derrama-se, furtiva, no desejo dos corpos que, entediados, esperam a revelação de um segredo ou da volúpia de uma deusa.

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Descrições fenomenológicas 30. Algumas mulheres 3

Rothko, N.º 5, 1964

Foi assim que a vi pela última vez. Um fundo negro, de um negro mais espesso que a noite, onde o rosto fulgurava na púrpura da escuridão. Não falava com ninguém, pois não havia quem dela se aproximasse. Olhava, com os olhos azuis, demasiado azuis, para um ponto indefinido. Os lábios deveriam ter incendiado muitas paixões, mas agora não havia neles nada que cantasse, nem sequer a promessa de um amor de ocasião. Estavam fechados, como fechada estava a face. Não havia sombra de desafio, nem uma nuvem de desilusão. As narinas, por vezes, abriam-se ligeiramente para deixar passar o ar. Nessas alturas, as pálpebras tremiam e o brilho dos olhos diminuía, mas logo se recompunha. Quem a via poderia pensar que esperava, mas nada o indicava, pois nela não ardia a tocha do desejo. A mão direita saiu da obscuridade e pousou no pescoço. Os dedos finos e compridos, belos como os olhos, eram agora ramos que nasciam do corpo. Os anos ainda não tinham passado por eles. Seguravam, na sua palidez, o fulgor que se desprendia do silêncio do rosto.

quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

Uma comédia

Jean-Louis Hamon - La comedia humana (1852)

Fátima Bonifácio terminava o seu artigo no Observador, sobre a eleição de Mário Centeno, assim: Sintomaticamente, as reacções mais do que reservadas do PCP e do Bloco à promoção europeia de Mário Centeno foram mais do que cautelosas. António Costa que se cuide. Mais do que uma aviso a Costa, a articulista estava a expressar um desejo. Um desejo, aliás, partilhado por largos sectores da direita. Esse desejo não é outro senão que o BE e o PCP façam o trabalho que a direita parece incapaz de fazer: derrubar o governo para que ela, direita, retorne ao poder.

Ontem, por um acaso, ouvi, na SIC Notícias, Mariana Mortágua dizer, sobre a eleição de Centeno, duas coisas. Primeira, que a eleição de uma pessoa não implica uma alteração das políticas de uma instituição e que não é expectável que haja qualquer novidade vinda do Eurogrupo. Segunda, que sempre houve uma divergência de fundo entre o BE e o PS sobre as questões do euro e das políticas que estão com ele relacionada. Apesar disso, acrescentou, tem havido condições para um acordo político. Não muito diferente será a posição do PCP.

O interessante é a conjugação das duas afirmações. Dito de outra maneira. No plano dos princípios, há uma divergência entre o PS e os partidos à sua esquerda. No entanto, e apesar da posição socialista implicar o respeito pelas políticas europeias, essa divergência não é fundamental. Não tem a importância suficiente para impedir um acordo e uma convergência de esforços das esquerdas. Há duas maneiras de ler a situação. Uma é a desejada pela direita: que esta divergência cause o colapso da geringonça. A outra é aquela que a direita teme e recalca: na prática e apesar de alguma retórica, BE e PCP aceitaram as regras do jogo e os princípios de equilíbrio orçamental e de combate ao défice público.

Dois anos de governação e três orçamentos parecem provas empíricas suficientes para suportar esta última afirmação. Por que razão a esquerda – que a direita, em desespero de causa, não se cansa de chamar radical – aceitou as regras do jogo? A coisa explica-se em poucas palavras: a Grécia e a governação Syriza. Quem quer copiar, seja onde for no mundo ocidental, as peripécias dos primeiros tempos do Syriza? Quem quer sofrer a humilhação que este sofreu? Os partidos políticos também aprendem.

O resultado de tudo isto não deixa de ser caricato. A grande clivagem política que animou o debate público, nos últimos dois anos, sobre a governação do país era pura e simplesmente inexistente. De uma maneira ou de outra, uns através dos princípios e outros através das práticas têm estado de acordo. Estas encenações com as suas liturgias, contudo, não servem apenas para satisfazer as clientelas ideológicas dos partidos. Servem também para esconder a sua falta de ideias sobre o que fazer do país. Na verdade, uma comédia. E é aqui que está o problema.

quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Micropoemas - Mármore 2


2. Pedras

Pedras,
fantasmas no fundo da serra.

Jazem mortas,
frias para quem as espera.

(Micropoemas, 1977/78 e 89)

terça-feira, 5 de dezembro de 2017

Um tronco cortado

Jean Dieuzaide, Vacances dans ma maison, cytologie, 1975

Olhamos para o tronco cortado e, no lugar de vermos o trabalho da morte, descobrimos o fascínio de uma geometria que nos faz imaginar símbolos que remetem para mundos desconhecidos ou sinais de um segredo que, sem sabermos porquê, sentimos que queremos desvendar. A morte na figura do animal, com a putrefacção da carne e do sangue, causa-nos nojo e horror. A morte no mundo vegetal acorda em nós sonhos e desejos que nos conduzem ao louvor da vida.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

A eleição de Centeno

Alfonso Parra Domínguez - Realidad dialéctica (1977-78)

Nota-se, em certos sectores da direita, mais activos nas redes sociais, um certo ressentimento com a eleição de Mário Centeno. Esse ressentimento manifesta-se, por vezes, de forma enviesada. Anunciam que o BE e o PCP tiveram de engolir mais um grande sapo. Contudo, isto não passa de um equívoco. Quando esses partidos estabeleceram os acordos de governo com o PS, imaginavam que este se tinha transformado num partido revolucionário anti-europeu, um partido que estaria disposto a emular os primeiros tempos do Syriza na Grécia? É evidente que tanto PCP e BE sabiam bem, muito bem, que tipo de partido era o PS. Sabiam também que este, no governo, não desafiaria o essencial da ortodoxia que rege o euro. BE e PCP não foram ao engano. Só para a direita foi uma surpresa o caminho que o país seguiu com a actual solução política.

Dirá essa mesma direita, desesperada por BE e PCP não derrubarem o governo para que ela volte ao poder, que isso contraria aquilo que ambos os partidos defendem. Talvez. No entanto, desconfio que tanto os eleitores do BE como os do PCP estão muito longe de quererem um novo resgate ou uma aventura que conduza ao enfrentamento com a União Europeia e à saída do Euro. Mesmo para comunistas e bloquistas a saída do Euro poderia ser devastadora para os seus partidos e, portanto, não estão dispostos a criar um problema em que se corre o risco de todos perderem, talvez eles mais que todos os outros. Também BE e PCP sabem, e o PCP sabe-o há muito, que a política é a arte do possível e percebem que há que conformar os princípios aos interesses dos seus eleitorados. Coisa que todos fazem. A realidade é o que é.

domingo, 3 de dezembro de 2017

Ensaios sobre a luz (16)

Andre de Dienes - Paris, 1936

O silêncio nascido da luz abre-se como um vendaval a rodopiar na noite que despiu as árvores para as revestir com a gélida glória das névoas de Dezembro.

sábado, 2 de dezembro de 2017

Gravitas

A minha crónica em A Barca.

Os antigos romanos possuíam quatro virtudes que estimavam acima de todas as outras. A pietas (piedade), a dignitas (dignidade), a iustitia (justiça) e a gravitas (gravidade). A tradução portuguesa de gravitas por gravidade não consegue reter a riqueza e densidade semântica do vocábulo latino. Literalmente, gravitas significa peso. Este peso, todavia, não é um peso físico mas moral. O peso que alguém ostenta devido à profundidade da personalidade, à seriedade, à responsabilidade e ao fundo compromisso com o dever. A gravitas foi vista como o pilar do gentleman inglês nas épocas Vitoriana e Eduardina. Até ainda bem dentro da segunda metade do século XX, um político que se prezasse ostentava a gravitas como forma de legitimar a sua presença no poder.

Sem se perceber muito bem porquê, talvez devido aos eflúvios do Maio de 68, a gravitas deixou de ser uma virtude que um homem político devesse ostentar. Talvez as câmaras da televisão, depois da grande revolução dos costumes, convivam mal com personagens graves, profundas e sérias. Elas precisam de outro tipo de actor político para animar o show business. Ora a decadência da gravitas não representa apenas a substituição de políticos com peso na sociedade por políticos cuja característica seja a leveza. A diluição da gravitas arrastou com ela o desaparecimento dos atributos que a compunham. Não apenas desapareceram as personalidades profundas, como desapareceram o culto da seriedade, da responsabilidade e o compromisso com o dever. Não vale a pena dar exemplos tanto em Portugal como por essa Europa fora. Talvez com a excepção da senhora Merkel, o mundo político é risível.

Em tudo isto há um sintoma de uma doença profunda que atinge as nossas democracias. Essa doença, porém, não tem a sua origem nas elites políticas mas nos cidadãos e nas comunidades. Estas, com o desenvolvimento da democracia e do bem-estar, tornaram-se complacentes com as elites dirigentes. São os eleitores que permitiram, primeiro, e exigiram, depois, que a gravitas desaparecesse da vida política. São elas que escolhem políticos risíveis, que veneram gente irresponsável. São elas que desligaram, nas suas concepções de vida e de comunidade, a relação entre dever e política. Assim como os monarcas absolutos, no Antigo Regime, se libertaram da tutela do papado, também os políticos actuais estão a libertar-se da tutela dos cidadãos. Estes são agora cúmplices da leveza com que as elites governativas tratam do bem público. Ora, contrariamente ao que se possa pensar, a democracia não é um regime irrevogável. Um dia poderá cair por falta de gravitas.

sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

Micropoemas - Mármore 1

Imagem daqui

1. Branca cal

Branca cal
tisnada de cinza e sangue.

Rumores de outono e vida exangue.

(Micropoemas, 1977/78 e 89)

quinta-feira, 30 de novembro de 2017

O que se perfila

A minha crónica no Jornal Torrejano.

Apesar dos trágicos acontecimentos ligados aos incêndios e de algumas patetices governamentais, a esquerda continua, nas sondagens, a ser largamente maioritária. O problema começa agora que os acordos, que estabeleceram a coligação parlamentar, estão praticamente cumpridos. O primeiro problema é o próprio tipo de solução política existente. O facto do governo não ser de coligação, com um acordo político sólido e com a responsabilidade partilhada por toda a esquerda, conduz a que todos comecem a calcular o que pode ser mais benéfico para si próprios. Um governo de coligação distribuiria mais justamente pelos três partidos os méritos e os deméritos da governação, sem que tivéssemos de assistir ao espectáculo impúdico que, por vezes, nos é oferecido do regatear de méritos na praça pública.

O segundo problema é que a partir de agora a idiossincrasia de cada partido vais ser mais forte do que a necessidade de sustentar uma solução política consistente. O PS está a retornar ao que é há muito. O caso das rendas da EDP é um sinal importante de que assim é. Como foi sublinhado por Miguel Sousa Tavares, o silêncio do governo – mas também da oposição de direita – perante o discurso de Mariana Mortágua, na aprovação do Orçamento, foi revelador de que o PS não deixou de ser o que era. Juntamente com o PSD e o CDS, um sustentáculo dos interesses instalados que devoram a fazenda pública e a privada. Parte dos socialistas parece ansiosa em libertar-se do apoio da esquerda para voltar às suas velhas políticas, que conduziram o país onde se sabe.

Também o BE e o PCP estão pouco dispostos a trocar, no futuro, o conforto ideológico de partidos de contestação por um papel de partidos de governo dentro do actual quadro de compromissos do país na esfera europeia e do euro. O que o país precisa das esquerdas é de um programa sério de reforma do Estado, construindo uma transparência que não existe, um projecto de diminuição do papel dos governos na instrumentalização das instituições públicas, um desígnio de modernização da economia e um plano sólido da preparação dos cidadãos para enfrentar os desafios da economia globalizada. Tudo isto dentro de um quadro de reforço da liberdade de iniciativa privada e de igualdade de oportunidades. O que o eleitorado de esquerda vai ter à sua disposição, a continuarmos no actual caminho, será bem diferente. Um PS amancebado, mais uma vez, com os grandes interesses, o BE preso em causas fracturantes e o PCP limitado à reivindicação social. O país e o eleitorado de esquerda mereciam outra coisa.

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Os gregos

Maynard Owen Williams - Two actresses at Delphi Festival adorn costumes of classical Greece, 1930

Não é possível ficar indiferente ao mundo que suscitou aquilo que vemos na fotografia de Maynard Owen Williams. A ilusão apolínea é uma promessa, nunca cumprida, de ordem, mas de uma ordem cuja rude racionalidade é envolvida pela beleza. E assim como o mundo dionisíaco continua a povoar os nossos sonhos nocturnos, o apolíneo persiste nos sonhos que sonhamos em estado de vigília. Enquanto não nos libertarmos dos antigos gregos não deixaremos de ser europeus. Se um dia, por um destino nefasto, os esquecermos, será que mereceremos estarmos vivos?

terça-feira, 28 de novembro de 2017

As coisas modernas

Pierre Dubreuil - Lyres Modernes, 1930

Num primeiro impulso, podemos ser levados a pensar que a passagem do tempo, quase 90 anos, tornou o título, Liras Modernas, anacrónico. Olhamos e o que vemos são velhos discos de 78 rpm. De 1930 para cá, tornaram-se obsoletos. A partir de 1948 começaram a ser substituídos pelos LP de vinilo. Estes foram-no pelo CD, embora sejam, nos nossos dias, objecto de culto que lhes dá nova vida. O CD cedeu perante ficheiros armazenados, primeiro, num dispositivo pessoal e, agora, numa nuvem impessoal. Apesar de toda esta história, o título nada tem de anacrónico e continua pleno de sentido. Faz parte das coisas modernas, como os velhos discos de 78 rpm, tornarem-se rapidamente obsoletas. A obsolescência não é uma mera consequência extrínseca ao objecto devido à passagem do tempo e à inovação técnica. A obsolescência é parte integrante da natureza do objecto moderno. Este não é fabricado para a eternidade mas para o momento. No projecto da sua produção está o desejo da sua morte. No entanto, onde se surpreende a modernidade do título é na metáfora que designa os discos como liras. Uma lira real exige uma dura e esforçada aprendizagem para ser tocada e distribuir prazer pelo ouvinte. Um disco não exige mais esforço que o da compra. O objecto moderno é aquele que democratiza o prazer sem democratizar o esforço que conduz ao prazer.  O objecto moderno, ao dar a ilusão de uma democracia do consumo, cria, na verdade, aristocracias quase impermeáveis, da produção e da performance.

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Árvores

Erich Angenendt - Tanz der Birken, 1949

Raramente, na economia das relações do homem com o mundo que o rodeia, se presta atenção a esses seres silenciosos que são as árvores. Aqueles que, nos campos, delas dependem ser-lhe-ão mais atentos, eventualmente, do que os homens da cidade. Em muitos, seja qual for o lugar em que vivem, a atenção dada deve-se à utilidade com que medem a sua presença. Haverá, porém, uma outra dimensão que estabelece uma relação mais funda e fundamental entre homens e árvores. Como a fotografia de Erich Angenendt torna manifesto, as árvores permitem uma contemplação desinteressada, uma contemplação estética, onde um prazer nos aproxima do segredo que habita esses seres silenciosos que nos observam impassíveis. E nessa aproximação, que o prazer estético proporciona, pode o homem descobrir que também ele pode aprender a olhar, impassível e silencioso, o mundo. Pode aprender uma estranha fraternidade com esses seres que dançam sobre a terra ao erguer os seus ramos para os céus.

domingo, 26 de novembro de 2017

Micropoemas - Elementos 8

Edward Burne Jones – Hope (1896)

8. Esperança

Esperança,
um vento frio que te açoite.

Escuto e oiço um som velar a noite.

(Micropoemas, 1977/78 e 89)

sábado, 25 de novembro de 2017

O talento do marionetista

Tina Modotti - The Hands of a Puppeteer (1929)

O talento do manipulador de marionetas reside na sua capacidade de infundir no artefacto a crença de que é livre e que todos os seus actos resultam do seu querer.

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Este país não é para novos

Fotografia de Ana Baião e Expresso

Esta fotografia é o resumo do problema e um hino ao ridículo. O famoso título do filme, dos irmãos Coen, e do livro, de Cormac McCarthy, Este país não é para velhos, não se aplica a Portugal. Depois do abandono de Passos Coelho da liderança do PSD, o lugar é disputado por gente da minha idade. Tanto Rui Rio como Santana Lopes são já sessentões, com uma longa carreira política. Têm o mérito da coragem. Disputam o lugar em tempos difíceis, onde a esquerda, apesar dos enguiços dos últimos tempos, tem ainda na mão a vitória nas próximas legislativas. Basta que a economia continue a correr como tem corrido até aqui e não venha nova catástrofe que ponha a nu a fragilidade das instituições e do país. No entanto, esse mérito não nos deve cegar.

O país – e quando falo de país, falo dos cidadãos, sejam de direita, de esquerda ou de coisa nenhuma – precisa de ideias novas e não de ideias recicladas. Precisa de gente que olhe a realidade tal como ela é e não de candidatos fortemente formatados pelas práticas políticas habituais e  pelas regras correntes do jogo do poder. Ser novo não é garantia, mas representaria uma promessa e uma expectativa. É verdade que, tanto no CDS como no BE, são gerações mais novas que ocupam os lugares de direcção, mas esses partidos são minoritários. Os grandes partidos precisam de gente nova. O PSD, talvez devido ao cálculo das possibilidades dos jovens candidatos a falcões (um falcão que calcula tanto não passa de uma pomba com pretensões a falcão), perdeu para já a oportunidade de se renovar e e contribuir para a renovação política do país. Na verdade, também no PSD se pensa que este país não é para novos.

quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Alma Pátria - 39: Chinchilas - D. João



Uma visitação ao nosso rock dos anos sessenta e setenta. Esse rock era essencialmente uma manifestação para bailes de Liceu e suave entretenimento de teenagers da classe média, consolidada ou em ascensão. No entanto, começava a penetrar no país uma cultura juvenil ligadas ao uso de alucinogénios. Este D. João, do grupo Chinchilas, data de 1970 e é já um reflexo dessa cultura, ainda em fase de fermentação na metrópole. Em Moçambique, por exemplo, teria já um desenvolvimento diferente. Conta-se, na letra da canção, a história de um drogado, um junkie, na linguagem "técnica" da época, proveniente de boas famílias, como acontecia naquela época, e que se arrasta pelas ruas do Porto. A canção começa assim: No Porto, vi-te morto / com um fato bem barato, /numa esquina muito fina. Como se vê, estava longe de ser pura, naquele tempo tão dado à imaculabilidade, a alma da pátria.

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Ensaios sobre a luz (15)

Francis Wu - The Dreamer

Inclinada pela luz, sonha-se num sonho de silêncio e árvores tocadas pela imaculada imagem do Inverno.

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Micropoemas - Elementos 7

Paul Klee - The Light and So Much Else (1931)

7. Relâmpago

Relâmpago.
De súbito, a luz acontece.

E logo vem a noite que a desvanece.

(Micropoemas, 1977/78 e 89)

domingo, 19 de novembro de 2017

Os gatos

Myron Wood - Cat Sunning, 1966

Mesmo no lugar mais pobre, um gato está nele como se estivesse num trono. Os gatos são majestades distantes, e olham-nos umas vezes com bonomia, outras com desprezo. As mais das vezes, o seu olhar transborda de comiseração. E é esta comiseração que os inibe de exercerem sobre os humanos um despotismo contumaz. Dão aos homens espaço para que estes tratem, nem sempre da melhor maneira, da sua vida. Por vezes, cheios da gravitas que lhes é própria, concedem-nos uma graça, mas logo impõem aquela distância que anuncia um verdadeiro poder. Se Marcelo Rebelo de Sousa ou António Costa possuíssem metade da gravitas de um gato e se mantivessem um décimo da distância que este impõe, ainda haveria lugar para uma esperança redentora.

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Escola, religião e cidadania


A minha crónica no Jornal Torrejano.

Por motivos profissionais estou a fazer formação na área da Filosofia da Religião. As reorientações que o programa de Filosofia do ensino secundário está a sofrer implicam, entre outras coisas, que a área dos valores religiosos se torne obrigatória e não seja, como até aqui, uma opção, a qual, por norma, é preterida pela dos valores estéticos. Vão ser as duas obrigatórias. Faz sentido, no contexto em que vivemos, tornar obrigatória, no ensino secundário, uma reflexão filosófica sobre a religião? Do ponto de vista tanto da formação do indivíduo como do cidadão, e é este que aqui interessa, faz todo o sentido.

A religião tornou-se um fenómeno político global. Confinada durante muito tempo, no Ocidente, à consciência do indivíduo, com o advento do Islão na esfera política mundial, tendo-se tornado um dos grandes actores geopolíticos, a questão religiosa deixou de poder ser vista como um mero problema pessoal. Concomitante a isto, está a relação – não poucas vezes conflituosa –, no mesmo território, entre populações secularizadas e de práticas religiosas meramente convencionais e populações de fortes convicções, onde a identidade pessoal é construída a partir da fé professada. Para crentes, agnósticos e ateus, a questão religiosa está de volta e deve ser pensada.

O contributo que a Filosofia, no ensino secundário, pode fornecer no âmbito deste assunto é muito específico. Não pode visar nem a uma catequese nem a uma contra-catequese. Isso é um problema que as diversas Igrejas e movimentos religiosos ou anti-religiosos devem fazer no respectivo âmbito de acção. A Filosofia visa antes fornecer um conjunto de ferramentas críticas, para que os alunos possam avaliar o problema religioso que o actual estado do mundo nos impõe, assim como as suas convicções pessoais, sejam elas quais forem.

Do ponto de vista político, esta missão da Filosofia é da mais alta importância. As questões religiosas, ao lidarem com a relação do homem com o sagrado, têm um enorme poder para desencadear paixões mortíferas. Introduzir na esfera da crença a reflexão racional e crítica não serve para destruir as crenças, para fazer conversões ou promover apostasias. Serve para diminuir as paixões, para que o fanatismo dê lugar ao debate sereno e à análise crítica rigorosa. Trazer a Filosofia da Religião para a formação dos alunos é um contributo para que a cidadania futura se torne melhor, mais racional, mais crítica e menos permeável ao vírus do fanatismo e aos rituais da violência.

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Ensaios sobre a luz (14)

Otto Steinert - Structures en fer et en bois, 1949

Pálida, a luz trouxe o Inverno e deixou-o cair sobre a cidade. As folhas mortas, invisíveis, são agora uma recordação na seiva suave dos filamentos de ferro.

quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Distopia

Heinz Hajek-Halke, Friedhof der Fische, 1939

A primeira vez que vi esta fotografia de Heinz Hajek-Halke, um dos grandes fotógrafos germânicos, não pensei nem em peixes nem em cemitérios. Ocorreu-me estar perante um ensaio - e a fotografia de Hajek-Halke pode ser vista no âmbito do ensaio -, um ensaio, dizia, sobre um projecto de arquitectura futurista. Como em muitos projectos futuristas, haveria nele a sombra ameaçadora e mortal de uma distopia. Quando descubro o título, Cemitério de peixes, não abandono a percepção de uma arquitectura distópica e, por inferência, a própria distopia. A conexão entre cemitério e arquitectura torna patente que toda a distopia é a construção de um espaço onde a vida está submetida às estruturas da morte e voltada para a morte. Não dessa morte que faz parte da vida, mas de uma morte que, tem no seu núcleo central, a eliminação da vida. Uma morte eterna. Não por acaso, os regimes políticos nascidos de distopias fizeram da morte não apenas um instrumento mas um fim. A distopia é, deste modo, uma anunciação e uma celebração da morte. As grandes cidades são enorme cemitérios.

terça-feira, 14 de novembro de 2017

Micropoemas - Elementos 6

Franz Marc - Animal in Landscape (Painting with Bulls II) (1914)

6. Animal

Animal,
vertigem, vento e voz.

Na noite, uivo selvagem e feroz.

(Micropoemas, 1977/78 e 89)

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Abandono

Deborah Turbeville - Unseen Versailles - Aurelia Weingarten, 1980

Olha-se a fotografia de Deborah Turbeville e percebe-se, se súbito, que todo o abandono é uma encenação, uma encenação que é uma estratégia para lidar com a desmesura, com o que há de excessivo. O corpo no chão, perdido na decomposição outonal, parece esmagado pela altura do palácio e, no entanto, não é a morte aquilo que vemos, antes um fingir-se morto, uma diminuição de si, como o fazem certos animais, para que o excesso envolvente não dê por aquela presença. O abandono é, então, um longo exercício de auto-defesa, de preservação, de conservação. Um recurso da esperança.

domingo, 12 de novembro de 2017

Ensaios sobre a luz (13)

Kurt Hielscher - Windmills in Dobrogea or Basarabia, Romania-Bulgaria, circa 1930s

Leve, a luz levita e move o vento nas velas do moinho, e logo se dissipa nos dedos que, lentamente, tocam o segredo do cereal.

sábado, 11 de novembro de 2017

Progresso moral da humanidade

Marc Chagall - Abraham and the Three Angels (1958-60)

O psicólogo Steven Pinker tem uma agenda de investigação cujos resultados tendem a contrariar as nossas percepções. Talvez tenha sido sempre assim, talvez a humanidade julgue que o presente é sempre pior e mais problemático que o passado. O presente nunca deixa de servivido sob o signo do apocalipse. Mesmo que isso não seja verdade para todas as épocas, parece ser uma evidência para aqueles que estão vivos hoje e que ainda viveram largo tempo no século passado. O século XX, com o seu cortejo de horrores, tem funcionado como o sinal de que a ideia de um progresso moral da humanidade é coisa destituída de sentido e já lançada para o lixo. No século XX aprendeu-se a dissociar, de forma sistemática, o progresso técnico-científico do progresso moral. O primeiro seria inegável, enquanto o segundo estava num fase de retrocesso. Os campos de concentração nazis e o gulag soviético surgiam como provas irrefutáveis desse retrocesso moral da humanidade. Um cepticismo antropológico tomou corpo e inundou as crenças de muitos, entre os quais me encontro. 

Mas mais importante do que ver as nossas crenças corroboradas é, segundo a lição de Karl Popper, vê-las destruídas. É isso que faz Steven Pinker (ver aqui). Contra as nossas intuições sobre o Zeitgeist, ele afirma que o mundo não se está a desmoronar. Pelo contrário. Nunca o mundo foi tão pacífico como o é hoje. Nunca os homens se mataram menos do que hoje em dia. A análise empírica que Pinker faz em Os Anjos Bons da Nossa Natureza torna patente, ao longo da História, um declínio contínuo da violência. Este declínio contínuo da violência pode não ser uma prova evidente da existência de um progresso moral da humanidade, para falar à maneira de Kant, mas é um sintoma forte desse progresso. Por falar em Kant, o mais importante filósofo do Iluminismo, Steven Pinker prepara-se para lançar um novo livro, em cujo título, Enlightment Now: The Case for Reason, Humanism and Progress, ressoa, quase palavra a palavra, a voz do filósofo de Königsberg. Talvez o cepticismo antropológico esteja errado e as esperanças do século das Luzes não tenham sido em vão. Esperemos.

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Reconhecimentos

Charles Émile Jacque - Sheep

Conforme a ciência vai produzindo conhecimento sobre animais não humanos, mais difícil é manter a atitude e a distância que a nossa espécie ostenta perante as outras. A ciência mais do que nos mostrar a existência de uma diferença absoluta, trata antes, sem qualquer objectivo ideológico, por nos mostrar a proximidade entre as espécies animais que partilham o planeta. Esses animais não são meras coisas que estão aí à nossa disposição, mas, surpreendentemente, são, também eles, o nosso próximo. Isso não significa que o homem tenha de deixar de ser omnívoro, mas implica um relação diferente da que existe numa cultura que olha para tudo do ponto de vista da mercadoria. O facto de elas reconheceram a face humana não deixa de suscitar alguma reciprocidade. Em certas culturas tradicionais - talvez na generalidade dessas culturas - não havia as fantasias do vegetarianismo, mas cultivava-se um grande respeito pelo animal. Esse respeito significava - e significa - comprometer o homem numa relação moral com os animais não humanos.

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

Micropoemas - Elementos 5

Amedeo Modiagliani - Cypress Trees and Houses (1900)

5. Séculos

Séculos,
ciprestes tocados pelo vento.

O corpo, um astro perdido no firmamento.

(Micropoemas, 1977/78 e 89)

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Um rolo de feno

Rodney Smith - Don Jumping Over Hay Roll, Monkton, Maryland, 1999

Elegi esta fotografia de Rodney Smith como uma metáfora da vida desde o primeiro momento em que me deparei com ela. Aparentemente, saltar sobre o rolo de feno é uma inutilidade, pois para prosseguir no caminho basta contorná-lo. Quando os indivíduos, as instituições ou as sociedades inventam obstáculos onde eles não existem, manifestam, desse modo, uma vontade de superação, um desejo de ir mais além, uma não conformação com aquilo que está. A vida pulsa dentro deles e anseia por se descobrir na superação do obstáculo. Quando indivíduos, instituições ou sociedades se desviam dos obstáculos que a vida lhes coloca e escolhem o caminho raso, sabemos então que a morte, disfarçada de inteligência, já tomou conta deles. 

terça-feira, 7 de novembro de 2017

Ensaios sobre a luz (12)

Francis Wu - Harvest Summer

A luz desliza das nuvens e é restolho que, descalços, os pés pesados pisam a caminho da solícita sombra da noite.

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Alma Pátria - 38: António Menano - Menina e Moça



Coimbra, Fado de Coimbra. Quais os grandes nomes? Certamente, José Afonso e Adriano Correia de Oliveira, também Luís Goes ou mesmo Luís Piçarra. Mas na arqueologia dessa canção encontramos gente como Augusto Hilário, Edmundo Bettencourt e o grande António Menano, melhor, o Dr. António Menano, ou o fado não fosse de Coimbra. Se o Fado de Lisboa expressa a alma popular portuguesa e, de certa forma, a aristocrática, almas muito mais próximas do que se pensa, o Fado de Coimbra é a expressão intelectual e burguesa da alma pátria. Mas aqui surpreende-se uma alma burguesa estranha à burguesia europeia, pois a saudade e o passado, mas não o futuro e a sua dinâmica dissolvente e progressista, são os elementos ideológicos estruturais. Uma burguesia fatalista, fixada no que foi e saudosa sabe-se lá do quê, explica muito daquilo que ainda somos.

domingo, 5 de novembro de 2017

A vida autêntica

Ernst Ludwig Kirchner - Vita alpestre (1919)

Uma parte do que somos é configurada pelo local onde nascemos e onde se desenrolou a infância. A vida na montanha é mais rude e rigorosa do que na planície ou nas cidades. A montanha é menos propícia ao devaneio. Ela, com os seus perigos e carências, exige frugalidade e uma atenção redobrada à realidade. Quase automaticamente, pensamos que a vida aí é mais autêntica e mais verdadeira. Esta relação, que o espírito faz sem nela reflectir, não deixa de revelar uma crença solidamente plantada no coração dos homens. A vida autêntica e verdadeira é aquela que, pela rudeza das suas condições, exige dos homens um grande rigor e uma não menor frugalidade. Por muito que gostemos do que é fácil e do que é cómodo, sabemos, por um saber ancestral, que a frugalidade e o rigor são o quinhão que nos deve caber.

sábado, 4 de novembro de 2017

Micropoemas - Elementos 4

Ernst Ludwig Kirchner - Girl Under a Japanese Parasol (1909)

4. Raparigas

Das raparigas,
o perfume e a erva.

Do rio, um pássaro a navegar a terra.

(Micropoemas, 1977/78 e 89)

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

O velho PS

A minha crónica no Jornal Torrejano.

Aquando da formação do actual governo, não faltaram maus agoiros sobre o descalabro da economia, o descontrolo do défice e a desmedida loucura da extrema-esquerda, isto é, do Bloco de Esquerda e do Partido Comunista. Agora que, como resultado das tragédias provocadas pelos incêndios, o governo enfrenta enormes dificuldades e abre o flanco à espada da oposição, é interessante olhar para as profecias e para a realidade. As profecias, nem uma se confirmou. A economia tem-se portado bem, o desemprego tem vindo a diminuir, o défice está a ser controlado. Também se descobriu que a extrema-esquerda é bastante moderada e responsável e, na prática, tem contribuído para os bons resultados da governação e para a boa imagem do país lá fora.

No entanto, estava sob os nossos olhos o principal problema, aquele que ninguém viu, que é a causa principal das actuais dificuldades de António Costa e motivo de arrufos com o Presidente da República. Esse problema chama-se Partido Socialista, o velho PS. António Costa, em desespero de causa, sua e do partido, teve um golpe de génio, ao fazer o acordo em que se funda o seu governo. No entanto, o seu Partido Socialista não deixou de ser o velho PS, o mesmo que gerou personagens como José Sócrates, Armando Vara e outras pessoas que, apesar de não passarem pelas vicissitudes onde estes se enrolaram, não gostaríamos que pertencessem ao círculo de amizades dos nossos filhos. E aquilo a que me refiro não são a supostas condutas ilegais, mas à ligeireza com que se tratam muitos assuntos públicos, à facilidade com que o aparelho partidário toma conta das instituições para seu gáudio e proveito.

O velho PS não morreu quando Sócrates saiu, até porque ele já existia antes de Sócrates ter chegado, como Guterres bem o sabia. E é esse velho PS que tem grande responsabilidade no que pior se passa neste governo. Toda a história dos incêndios deste Verão – embora a responsabilidade tenha de ser partilhada por outras forças partidárias e sociais – é um retrato cruel, mas fidedigno, desse velho establishment partidário. Ligeireza, facilitação, falta de rigor, e uma visão do Estado como lugar de emprego para os rapazes e as raparigas que começaram a vida a colar cartazes. O PS não é o único, mas é ele que agora governa. O que falhou neste Verão, não foi a economia – graças ao professor Centeno, que não pertence ao velho PS –, não foram exigências desmedidas dos parceiros da maioria parlamentar, que se mostraram sempre rigorosos e responsáveis. Foi mesmo o velho PS. E o problema é que parece não haver outro.

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

O que está em jogo

A minha crónica em A Barca.

Um ano terrível de incêndios. E sempre que uma coisa terrível se manifesta, há uma luz que desce sobre a realidade e torna visível aquilo que era invisível, aquilo que ninguém queria ver. Não falo da desorganização dos serviços, não falo da desordem que campeia na floresta. Falo de um país que, apesar de ocupar parte muito significativa do território, deixou de se ver. Ali tudo parece mais arcaico. Em muitos lugares, é a ruína que cresce desmedida. Noutros, a ruína ainda não chegou por completo, mas são habitados por solidões sem fim. Olhamos o país e parece que uma parte desatou a correr por aí fora e foi deixando a outra para trás, até que se esqueceu dela por completo. Os incêndios, para lá das mortes, mostraram um país – isto é, uma parte da população – que foi abandonada à sua sorte, ou antes, à sua má sorte.

Talvez tudo tenha começado pelos anos sessenta do século passado com as grandes vagas de imigração. O país, atolado na guerra e na ditadura, não teve o talento e a capacidade para fomentar pólos de geração de riqueza distribuídos pelo vasto interior. A transição à democracia acabou por fomentar um modo de vida urbano que acentuou a tendência para o despovoamento. Depois veio a grande época dos fogos de artifício, a entrada na CEE. O dinheiro jorrou país fora, mas o resultado foi cavar mais o fosso entre o interior e o litoral, entre as zonas deserdadas e as zonas ricas. Com a crise do défice, os meios que poderiam existir para continuar a disfarçar a realidade desapareceram. Bastou um ano como este e tudo veio ao de cima, com mais de cem mortos pelo caminho e perdas incalculáveis. Os incêndios deste Verão mostraram que, tirada a maquilhagem trazida pelo dinheiro europeu, a face do país não é lá muito bonita de se ver.

Será que o país, todos nós, aprendemos alguma coisa? Será que, depois das emoções esfriarem, ainda nos lembraremos desse país que agora descobrimos? Será que a nossa memória do acontecido persistirá apenas até à próxima desgraça ou até ao próximo derby e ao escândalo de um penalty roubado? Temo que, com as primeiras grandes chuvas, a vidinha tome conta das instituições e dos cidadãos e tudo fique como está. É verdade que se estão a tomar medidas interessantes. O problema, porém, é se essas medidas são uma mudança para que tudo fique na mesma. O que está em jogo não é só como evitar e combater os incêndios. Não é só ordenar a floresta e discutir a vexata quaestio do eucalipto. O que está em jogo é o que vamos fazer com o nosso interior. O que está em jogo é se vamos continuar a abandonar as pessoas desse interior.

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Ensaios sobre a luz (11)

Gustave le Gray - Le Havre, Bateaux quittant le port, 1856

Luz sobre as águas e os barcos, cerzidos ao céu, partem para a terra do esquecimento.

terça-feira, 31 de outubro de 2017

Catalunha, um certo desconforto

Francisco Iturrino - El paseo. Plaza de Cataluña (1915)

Agora que o problema da Catalunha parece entrar na via da solução – uma solução transitória, como tudo na vida –, vale a pena tentar compreender porque gera uma sensação não só de pura irrealidade mas de um tão grande desconforto. Não se trata de uma questão política, saliente-se. É fácil compreender o ponto de vista das partes. Trata-se antes da encenação, das palavras, das manifestações, das acusações, das fugas. Enfim, da estética do evento, da deplorável estética que dele ressalta.

Num mundo civilizado e esteticamente suportável tudo se passaria tranquilamente. O governo da Catalunha diria: bem estamos cansados deste casamento e queremos o divórcio. Não há razões para continuarmos a viver na mesma casa. Vamos lá fazer as contas. O governo de Madrid consideraria o caso, entre o enfado e a irritação, e proporia que se consultasse o Rei para fazer terapia de casal. As partes desavindas, nas sessões, poderiam insultar-se, embora sem levantar a voz, como se estivessem num filme de Bergman.

A certa altura, o Rei, com cautela e para não interferir na vontade das partes, sugeriria que pensassem bem na situação. Que tal um exame de consciência por parte de quem se quer divorciar? E como quem não quer a coisa, sem gritaria, convocava-se um referendo para, pacata e civilizadamente, os catalães dizerem o que lhes vai na alma. E chegaria o dia em que diriam: foi bom, mas acabou-se. Ou, na alternativa mais provável, reconheceriam que a ligação ainda tem muito para dar.

Tudo isto, porém, sem grande espectáculo, sem palavreado horrendo, sem a chicane do que se quer ir, sem os ataques de fúria do amante atraiçoado, e também, no caso provável de quererem continuar casados, sem cenas românticas na via pública. Num mundo modicamente civilizado, como é suposto a Espanha ser, nada do que se tem passado se deveria ter passado. Casamentos, concubinatos, traições e divórcios são coisas que se devem tratar com discrição. No fundo, ser civilizado é um exercício contínuo de saber manter as aparências e, acima de tudo, o fair-play