quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

A política sem política

Brice Marden - Grove Group, I (1973)

Salazar. Esse nome, essas letras, quasi deixaram de pertencer a um homem para significar o estado de espírito dum País, na sua ânsia de regeneração, na sua aspiração legítima de uma política sem política, de uma política de verdade. (António Ferro)

Para além do encómio ao professor Salazar, a citação de António Ferro tem a virtude de manifestar um dos elementos estruturais dos estados autoritários, a política sem política. E a política sem política é assim tida como a verdadeira política. O que significa a política sem política? Significa a ausência de confronto entre perspectivas políticas adversariais, a negação da concorrência pela ocupação do poder. A política sem política é aquela que concentra o poder na mão de um homem, ou de um grupo, e que exclui todos os outros.

A citação de António Ferro tem ainda uma outra virtude. Esta política sem política mais do que uma imposição é uma aspiração da comunidade, a qual legitima a ditadura e a exclusão da concorrência pelo exercício do poder. Isto revela uma dificuldade dos portugueses: suportar a tensão que a concorrência entre perspectivas diferentes impõe, suportar o conflito e a contradição trazida pelo facto de se existir. E isto não desapareceu com o regime democrático. Dois exemplos sintomáticos tornam claro que essa política sem política continua a habitar o imaginário dos portugueses.

O primeiro exemplo provém de Cavaco Silva. Sempre tentou mostrar-se para além da classe política, ser um político que não era político, que tinha uma política sem política. E esta posição foi quase sempre acolhida em delírio pelos portugueses que o tornaram o político mais vitorioso do regime democrático. E não se pense que a posição de Cavaco Silva era meramente estratégica. Não era. Ele acreditava nisso. Acreditava que havia só uma política verdadeira e daí aquela ideia da necessidade de um grande acordo, pois havendo um claro conhecimento da situação, facilmente se perceberia a solução única a aplicar.

O segundo exemplo é a forma como as pessoas mais empenhadas no debate político o encaram. Não o vêem como o exercício de posições diferentes e meramente relativas sobre a governação. Pelo contrário, encaram-no como a afirmação de verdades absolutas que, infelizmente, ainda não eliminaram o contraditório e a possibilidade do outro ter um ponto de vista diferente. O que se assiste, na verdade, não é a uma afirmação radical do pluralismo, mas ao confronto de projectos que cada um deles, em última instância, visa instaurar a política sem política.

Para acentuar a gravidade de tudo isto, a política sem política corresponde, ao nível da economia, à livre concorrência sem concorrência ou à inovação sem inovação. Corresponde ao nível das instituições no recrutamento de quadros imparcial sem imparcialidade ou aos compromissos sem compromisso. A política sem política, tão louvada por António Ferro, não é mais do que o processo pelo qual nós portugueses nos tornamos ausentes de tudo o que requer a nossa presença. É a forma como disfarçamos perante nós mesmos esse terrível fardo de existirmos.

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