terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Descrições fenomenológicas 17. O álbum

Gerardo Rueda - Verde (1961)

Era uma janela estreita. A guarnição de ferro acastanhado, talvez oxidado, encaixava pedras de calcário, frustes, que serviam de batentes e travessas. Duas dobradiças metálicas, pintadas de verde, articulavam a veneziana com a parede. Aberta, deixava entrar a luz da manhã. Dali avistavam-se os campos e a ordem que deles se desprendia. As propriedades variavam de acordo com a dimensão das casas. Grandes lençóis de verde intercalavam-se com outros cor de saibro, terras deixadas em pousio, imagens do ritmo dos campos, símbolos do equilíbrio precário que alimenta estômagos e ateia imaginações. As casas, embora diferentes em tamanho e forma, eram idênticas pela cor. Sem excepção, os telhados de cor avermelhada encimavam paredes imaculadamente brancas, de um alvor que fulgurava se o sol incidia sobre elas. Um pouco mais ao longe, num pequeno promontório, vicejava, entre sombras e luz, uma aldeia adormecida, inclinada para as terras de cultivo. No horizonte longínquo, adivinhava-se a cinza escura das grandes montanhas recortadas num céu claro e luminoso. Sentada à janela estava uma mulher, macerada pelos anos, enrugada por desgostos e mistérios. O pescoço pregueado assentava nuns ombros encurvados. A idade, se a tinha, era indecifrável. Um vestido longo, até aos pés, e de cor indefinida, castanho ou púrpura, disfarçava-lhe as formas. As mangas deixavam ver um antebraço delicado que se rematava num pulso estreito prolongado por mãos magras e longos dedos. Os cabelos, da cor do vestido, estavam atados no alto da cabeça. A luz banhava-a e aquecia-a. Nada do que se passava lá fora, contudo, parecia interessá-la. A cabeça inclinava-se um pouco para a frente, para que os olhos pudessem pousar no livro que segurava sobre as pernas. Observava. Os olhos caíam no livro como aves de rapina sobre uma presa. Intensos, rápidos, decididos. Depois, fechavam-se durante longos minutos, como se assim fosse possível reter um sonho ou realizar um desejo, e tornavam a abrir-se, enquanto ela, com uma energia insuspeitada, mudava de página. O livro não tinha palavras, apenas imagens, que ela olhava interrogativamente, como se alguma delas pudesse devolver a vida mortal e passageira que tinha sido retida, numa promessa de eternidade, pelo disparar do fotógrafo. Um velho álbum de fotografias de guerra. Campos de batalha, carros de combate, aldeias arrasadas, terras incendiadas, soldados, muitos soldados, à deriva, gente anónima, de olhos devastados, estropiada, marcada pela fome e pelo terror. Tocada pelo sol, a mulher – que nome teria? – olhava em silêncio e imaginava o troar das batalhas, o desespero dos homens, a desconsolada consolação que a morte talvez lhes trouxesse. Havia páginas em que se demorava longamente, perscrutava-as com um olhar de águia. Cada rosto era submetido a um longo inquérito. Depois passava à seguinte e esperava. Esperava, no seu manso desespero, um milagre, a descida de um deus que tocasse o álbum e fizesse o filho saltar daquelas páginas para o seu colo seco e descarnado.

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