sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Descrições fenomenológicas 18. O espelho

Ben Nicholson - Hielo - casi azul (1960)

A luz amarela dá uma tonalidade dourada às paredes brancas e cai desamparada pelo chão onde é acolhida por enormes lajes brancas e vermelhas, dispostos em mosaico. Um hall grande e inóspito, também de paredes brancas, com barra púrpura, abre-se, lateralmente, para o corredor. Na parede em frente das portas escancaradas do vestíbulo há um espelho, emoldurado em mogno, onde se reflecte o rosto de uma mulher, de cabelos castanhos, os ombros ocultos por um vestido verde seco e um decote largo que revela, e logo dissimula, a curvatura dos seios. Está parada, como se uma indecisão a tivesse tomado e a paralisasse, na linha onde o corredor e o hall se juntam, uma fronteira bem delineada, o símbolo que demarca o caminho que leva à rua, ao espaço público, e o que dá acesso ao mundo familiar, no qual se dissimula a intimidade e os dramas, se não a comédia, da vida privada. A mulher, vestida até aos pés, tem na mão esquerda um cigarro que vai libertando o fumo que se evola em direcção ao tecto. O espelho deixa ver um rosto ainda belo, mas já marcado pela idade. Nele insinua-se o cansaço da noite, anunciando que a beleza não é eterna. Atrás dela, caminhando em sentido contrário, um homem, vestido com um longo sobretudo cinzento, segura debaixo do braço direito uma pasta de couro. Dirige-se para a rua. Os cabelos grisalhos deixam perceber que é mais velho do que a mulher. As costas encurvadas menos pela idade do que pelas preocupações que afloram no rosto, onde uma barba branca e rasa acentua a sensação de velhice, parecem suportar um peso excessivo para qualquer ser humano. Ao cruzarem-se, olham-se e trocam um cumprimento rápido, quase imperceptível. Ela continua estática, fascinada pelo espelho, mas não é certo que seja o seu reflexo que ali vê. Ouve-se uma porta, a da rua, bater, sem violência, enquanto a cinza se desprende do cigarro e cai desamparada no chão. Ela move um pé, mas fica onde está. A luz vinda do corredor banha-a e projecta-lhe a sombra na madeira escura da porta. Lá fora, ouve-se o ruído de um carro posto a trabalhar e, de imediato, o deslizar suave das rodas no asfalto. O silêncio voltou à casa e ela leva o cigarro à boca sem deixar de fitar o espelho.

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