segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Descrições fenomenológicas 21. Fumo e humidade

Antonio Tápies - Superposición de materia gris (1961)

Ao longe vêem-se as chaminés das fábricas. Deixam sair um fumo denso e escuro que se mistura com a humidade do dia. A amálgama cai sobre a pequena cidade como escamas que crescem nos olhos para os proteger do excesso de luz. Parou de chover, mas a rua ainda está molhada, deixando reverberar a pouca claridade que toca os paralelepípedos com que a estrada e os passeios são calcetados. Nem um carro se avista. Os prédios são cinzentos e pobres e lembram, no seu desconcerto, pessoas a quem o passar dos anos roubou, na pobreza que é a sua, os dentes. A maioria das casas tem apenas um piso térreo. Aqui e ali, porém, dois andares erguem-se sobre rés-do-chão raquíticos, macerados pela humidade, pela incúria que os tempos difíceis nunca deixam de trazer na sacola com que percorrem a vida dos homens. Na verdade, algumas das casas estão apenas rebocadas a cimento. Outras, nem isso. Mostram, num misto de vergonho e despudor, os tijolos. Em algumas janelas os vidros desapareceram e, no seu lugar, há tábuas já marcadas pela humidade. Vindas do lado norte, uma mãe e a sua filha, de mãos dadas, caminham flectidas, como se necessitassem de um esforço suplementar para vencerem um obstáculo invisível. Aproximam-se sem dizerem palavra, concentradas na luta contra o caminho. Vinda do lado contrário, uma mulher jovem, vestida com uma gabardina verde seco, transporta uma pasta de cabedal. Volta-se para trás e o rosto abre-se num grande sorriso. Não se avista destinatário para o sorriso. Vai no meio da estrada, aproximando-se de um dos prédios mais altos, de portadas de madeira abertas, deixando ver os vidros das janelas, ainda inteiros, e um vulto silencioso e sombrio. Ela não deixa de sorrir e de olhar para trás e quase tropeça no rebordo do passeio. Dá uma gargalhada, compõe a gabardina e entra por uma das portas que, misteriosamente, se abriu. No passeio do outro lado da rua, dois rapazes, talvez com cinco ou seis anos, estão especados a olhar. Singulares rapazes presos às suas boinas negras. Têm os olhos grandes e abertos, tão abertos que parecem querer absorver toda a luz que existe. No da esquerda, a boina descai e tapa a orelha direita, o que realça o rosto, onde a boca semiaberta não esconde a estupefacção. Tem um casaco grosso cinzento com quadrados cor de vinho abotoado até ao pescoço. O outro usa a boina para tapar o cimo da cabeça. Parece mais taciturno e menos dado ao devaneio do que o seu colega. De dentro do casaco nasce um longo cachecol. Está frio e ambos esperam de olhos abertos que alguma coisa chegue ali e os leve daquele mundo cinzento para um outro mais brilhante e luminoso. Por vezes, esboçam um sorriso. Depois, desistem e enfiam as mãos nos bolsos das calças. Por fim, sem dizerem palavra, sem se olhar sequer, desatam a correr rua fora. Desaparecem na esquina tragados pela humidade e pelo fumo que, impenitente e irascível, se solta das chaminés das fábricas hirtas e melancólicas como falos abandonados no desalento da solidão.

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