sexta-feira, 10 de março de 2017

Thomas Bernhard


A minha crónica no Jornal Torrejano.

A obra do escritor austríaco Thomas Bernhard é daquelas que colocam com mais acuidade a relação entre a biografia pessoal e a obra de arte. É verdade que o princípio, presente na hermenêutica de Paul Ricœur, que nos ordena ler uma obra como se nada soubéssemos do seu autor continua válido. A arte de Bernhard vale por si mesma, muito para além das circunstâncias pessoais e sociais do autor. Quem ler, porém, obras como “Extinção. Uma derrocada”, “Perturbação”, “O náufrago” ou “O sobrinho de Wittgenstein. Uma amizade”, não deixa, ao ser confrontado com o ressentimento com a Áustria e os austríacos que inunda as páginas daquelas obras, de perguntar o que na vida do autor gerou tal reacção. O génio de Bernhard está em ter transformado o ressentimento em obra de arte, uma obra de arte violenta e sem contemplações com a hipocrisia dos austríacos.

Bernhard é marcado por dois acontecimentos. A ilegitimidade do seu nascimento (nasce em 1931, filho natural de uma criada e de um carpinteiro, que nunca chegou a conhecer) e a tuberculose pulmonar que o leva a um grande período de internamento num sanatório e a estadias bastante prolongadas na Polónia e em Portugal, em busca de um clima mais adequado à sua saúde. A patologia – seja a social, como nascer fora da norma católica, ou a física, como a tuberculose – torna-se num ponto de observação sobre a realidade social que envolve o autor. O talento está em transformar um observatório meramente subjectivo – as patologias de que se é vítima – num dispositivo de observação e análise da realidade com valor universal.

Um estado patológico permite perceber melhor e mais exaustivamente a doença que está presente nas pessoas e na sociedade. É a partir daí que incessantemente Thomas Bernhard expõe cruamente a falsidade presente nas instituições e nos sujeitos. O cerne da desmontagem está na relação que o autor estabelece entre um espírito nacional-socialista – que permitiu o anschluss e cujo anti-semitismo não teria chegado a desaparecer no pós-guerra – e a cobertura católica com que o próprio Estado (durante muito tempo nas mãos dos socialistas) e a sociedade se travestem. A partir do abandono originário e da morte sempre próxima, tudo aos olhos do escritor parece ridículo e a caminho da destruição ou da extinção. Ridículo e destruição que as suas personagens, também elas patológicas, exibem ou, melhor, proclamam em longos monólogos, que denunciam o solipsismo do autor e, na verdade, um autismo social inultrapassável. Seja como for, Thomas Bernhard é um dos grandes escritores da segunda metade do século XX.

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