domingo, 30 de abril de 2017

Autismo social

Pére Ysern Alié - Regata en Mallorca (1915-17)

A história é particularmente sugestiva, pois integra arte moderna, administração, trabalhadores, veleiros e, o mais extraordinário, um apelo à caridade. Em resumo, a Tate Modern e a Tate Britain pediram aos seus trabalhadores para que contribuíssem com o quisessem para se comprar um veleiro a oferecer a Nicholas Serota, o homem que criou a Tate (aqui) e que a vai abandonar no próximo mês de Maio. A reacção dos trabalhadores não se fez esperar. O interessante da história não está no facto de ser mais um episódio da luta de classes, digamos assim, mas de tornar evidente que as elites se acham credoras de tudo e mais alguma coisa por parte da plebe, não recusando inclusive ao apelo caridoso. A cândida atitude da administração da Tate e o seu espanto perante a reacção dos trabalhadores é o dado mais interessante de toda esta história. Assinala, com precisão, o grau de autismo social em que se caiu. Estas coisas começam a fazer lembrar a situação que conduziu, segundo uma história possivelmente apócrifa, uma rainha em desespero de causa a dizer se não têm pão, que comam brioches.

sábado, 29 de abril de 2017

Confidências

Arturo Souto Feijoo - Confidências (1962)

Não fazer e, acima de tudo, não escutar confidências. O verdadeiramente secreto é incomunicável, o que se pode comunicar não merece a escuta ou a partilha. O silêncio é infinitamente mais honroso e útil do que a venalidade de uma confidência.

sexta-feira, 28 de abril de 2017

O Rumor das Ruas - 17. Esperam os corpos

Jean-Baptiste-Camille Corot - Uma manhã; baile das ninfas (1850)

17. Esperam os corpos

Esperam os corpos
o combate sobre a
relva da aurora
e logo uma sombra
de violetas ergue-se
na lava do coração.

Rumorejam as ruas
na ilusão da manhã,
um caos suado
preso às embarcações
que rasgam
o rio da Primavera.

E o dia frutifica
na queda dos astros:
o ócio do oceano,
as velas desfraldadas,
o navio naufragado
no mar da madrugada.

(O Rumor das Ruas, 1978)

quinta-feira, 27 de abril de 2017

Atracção pelo abismo

Paul Huet - Abismo; paisagem (1861)

São múltiplos os sinais de que vivemos num tempo perigoso. Talvez o sintoma mais preocupante seja a atracção pelo abismo que se insinua, entre muitos ocidentais, com cada vez mais força. Aquilo que ainda há alguns anos causaria repulsa generalizada é agora visto como uma possibilidade e uma possibilidade que, de forma mais ou menos velada, se deseja. É o crescimento desta atracção que marca a periculosidade dos nossos dias. Quando o sentimento deixa de querer evitar aventuras e situações extremadas para se abrir às propostas políticas que deveriam fazer corar de vergonha gente civilizada, então podemos estar a caminho, mesmo que ainda não seja perceptível, de uma desgraça.

O abismo sempre existiu e não pode ser eliminado da vida social e política. Pode, todavia, ser contido num limiar aceitável e que não ponha em causa uma vida social equilibrada. O problema surge quando aqueles que deveriam cuidar de manter o abismo afastado são os que, pelas opções políticas que tomam, acordam o monstro adormecido que existe no coração de cada ser humano. A destruição dos equilíbrios sociais, o espectáculo das desigualdades acima do limiar que a inveja permite tolerar, a sensação de que a situação só pode piorar, a aniquilação da esperança, tudo isto contribui para que a atracção pelo abismo cresça.

Embora nunca se saiba muito bem onde fica, há um limiar que se ultrapassado transforma a atracção numa queda inexorável. A Europa, no século passado, ultrapassou-o pelo menos duas vezes. O resultado, que se está a dissolver na consciência colectiva, não foi bonito de se ver. O que se passar em França na segunda volta das eleições pode-nos indicar se vivemos ainda um tempo de mera atracção pelo abismo ou se nos estamos já a precipitar nele. Mesmo que o pior seja evitado, estamos longe daquilo que é necessário para conter a crescente atracção pelo abismo, para delimitar este num nível aceitável. É preciso que os aprendizes de feiticeiros e os pirómanos sejam afastados do comando da política europeia. E nela não faltam nem uns nem outros.

quarta-feira, 26 de abril de 2017

A recusa de Mélenchon

Ilse Bing - Chairs with Leaves, Luxembourg Gardens, Paris (1952)

Como interpretar a posição de Jean-Luc Mélenchon (o candidato da esquerda radical que obteve quase 20% dos votos) e a sua recusa em aconselhar o voto na segunda volta das presidenciais francesas? Para adensar o mistério, Alexis Corbière, porta voz do candidato derrotado, diz que é necessário "distinguir entre uma escolha íntima e uma escolha política". Isto significa o quê? Na verdade, não significa nada, pois em política todas as escolhas são escolhas políticas e todos os silêncios têm um significado. Por isso, também é política a escolha por não escolher. Perante o trágico da acção, perante a escolha entre duas alternativas que, eventualmente, desagradarão a Mélenchon, este, enquanto agente político com responsabilidades perante um quinto do eleitorado, abdica da sua liberdade e entrega ao destino a sorte dos franceses. Esta é, numa primeira leitura, uma aplicação à política da má-fé sartreana. Decidir-se pela não decisão. 

Esta decisão pela não decisão tem, porém, uma leitura política. Tanto faz a Mélenchon que os franceses escolham um centrista, liberal e democrata ou uma soberanista, radical de direita. Numa linguagem hiperbólica (sublinho, o hiperbólico), é indiferente que escolham entre democratas e fascistas (ou descendentes políticos de fascistas). Mélenchon sabe - ou, pelo menos, deveria saber - que parte do seu eleitorado pode ser atraído por Le Pen, pois muitos dos votantes da Frente Nacional vieram do PCF. Se assim for, somos obrigados a uma segunda leitura. E se a má-fé, segundo o modelo de Sartre, for apenas aparente e esconder efectivamente uma opção, mas uma opção inconfessável? Não é destituído de sentido pensar que Mélenchon quer, pelo menos, o reforço da votação de Le Pen. Isso enfraqueceria a eventual vitória de Macron e o europeísmo, contribuindo para acentuar a crise da União Europeia em vez de encontrar um caminho para a sua solução e um reforço das democracias. Seja uma decisão pela não decisão, seja uma deliberada manobra táctica, a esquerda radical francesa, com a posição do seu candidato, não sai nada bem no retrato. O lugar vazio que a voz de Mélenchon não ocupou pode ser ocupado por gente nada recomendável.

terça-feira, 25 de abril de 2017

Um regime ainda vivo

Fotógrafo não identificado - Salgueiro Maia fala aos civis [arquivo fundação Mário Soares] (25-4-1974)

Há uns tempos a retórica sobre o esgotamento da terceira República – isto é, do regime nascido com o 25 de Abril – parecia condenada a ter razão. Hoje que se comemoram 43 anos do derrube da ditadura do Estado Novo, o regime, na fórmula que adoptou, parece ainda ter vigor suficiente para responder ao país e às suas necessidades. Há uma personagem central nesta alteração de percepção sobre a saúde do regime, António Costa. Foi ele que, num momento em que o Partido Socialista parecia afundar-se, tal como tinha acontecido com o grego e o espanhol (agora foi o francês), descobriu o caminho das pedras, ao transformar uma derrota eleitoral numa vitória política, vitória que enfureceu a direita, que não só ainda não a digeriu como não a compreendeu (basta ver os patéticos pedidos de auxílio que faz ao BE e ao PCP para se oporem a opções que ela, direita, tomaria de forma muito mais radical).

A nova situação – absolutamente inédita – mostrou que o regime tinha alternativas, que não estava condenado ao rotativismo de dois partidos políticos viciados e viciosos. Por muito que isto irrite a direita portuguesa, a actual solução tem virtualidades democráticas enormes. Basta comparar a situação política portuguesa com a grega, a espanhola e a francesa. Em todas elas o centro esquerda quase desapareceu, dando lugar a opções radicalizadas que têm chocado – como no caso do Syriza na Grécia e do Podemos em Espanha – violentamente com a realidade. A esquerda portuguesa, apesar da fragilidade inicial do PS e dos quase 20% do PCP e BE, tem mostrado uma moderação e uma sensatez que nem as outras esquerdas do sul da Europa nem, noutro sentido, a própria direita portuguesa ostentaram e ostentam. E isso tem poupado aos portugueses muitos dissabores, angústias e aventuras de resultado duvidoso.

É verdade que a situação em que vivemos é frágil, pois o país, devido aos compromissos internacionais e à dívida pública, não depende de si. Isto significa que se a Europa continuar a não aprender com os resultados de referendos e de eleições, a nossa situação pode degradar-se rapidamente. Os regimes democráticos, tal como se desenvolveram na Europa do pós-guerra, dependem da existência de amplas classes médias e do chamado elevador social que permita aos mais talentosos afirmarem-se na sociedade. Se se persistir na destruição das classes médias, se as expectativas das pessoas em viverem melhor forem negadas pelas opções políticas, enquanto a riqueza de alguns sobe exponencialmente, a Europa entrará em declínio irreversível e o regime português, tal como começou a desenhar-se há 43 anos, será arrastado por esse declínio. O talento de Costa tem residido no casamento – aparentemente, espúrio – entre dois radicalismos, o da União Europeia ordo-liberal e o da esquerda portuguesa à esquerda dos socialistas. Até agora, apesar de algumas intervenções infelizes do senhor Wolfgang Schäuble, António Costa tem conseguido a quadratura do círculo. O regime nascido do 25 de Abril deve-lhe isso, a ele e, também, à esquerda que tem sabido sacrificar a ideologia a um bem maior, a preservação do próprio regime. 

segunda-feira, 24 de abril de 2017

A questão

Eugène Delacroix - La liberté guidant le peuple (1830)

No Le Monde online pode ler-se o espanto com que os media ingleses acolheram o sucesso pró-europeu de Emmanuel Macron. Contudo, deve-se ser prudente neste sucesso e olhar mais de perto para os resultados eleitorais de ontem. E estes estão longe de serem tranquilizadores para o europeísmo. Na prática, e somando a contestação de direita e de esquerda, o anti-europeísmo atinge 48,59% dos votos expressos, assim distribuídos: Le Pen (21,53%) + Mélanchon (19,64%) + Dupont-Aignan (4,75%) + Poutou (1,22%) + Asselineau (0,92) + Artaud (0,65). Pode-se afirmar que o soberanismo de esquerda e o de direita não são iguais, mas uma coisa é certa: ambos representam uma ruptura com os caminhos que a UE vem seguindo. Aquilo que foi durante décadas consensual é hoje um factor enorme de divisão. Quando o eleitorado de um dos principais países fundadores do projecto europeu se mostra tão renitente com a situação algo está longe de estar bem. Resta saber uma coisa: terá a elite política europeia - nomeadamente o Partido Popular Europeu e o Partido Socialista Europeu - aprendido alguma coisa com o brexit e com os resultados das eleições francesas de ontem ou, pelo contrário, vê na possível vitória de Macron uma legitimação suficiente da justeza do caminho adoptado até aqui e vai continuar como se nada se tivesse passado? Macron pode ser um passo para a regeneração do projecto europeu, mas também pode ser o véu que cobre o cadáver em decomposição.

domingo, 23 de abril de 2017

O Rumor das Ruas - 16. Chove

Duane Michals - da série Fallen Angel (1968)

16. Chove

Chove.
Sobre a cama
a camisa de linho,
o lençol do Inverno,
o nome preso
na água da aurora.

Chove.
O fósforo deflagra,
ritmo e rumor,
abre-se em clarão
de silêncio
e cigarros partilhados.

Chove.
Na cama um rio
e a tua sombra,
a camisa rota
pelos invernos
de lama, luz e linho.

(O Rumor das Ruas, 1978)

sábado, 22 de abril de 2017

Alma Pátria - 25: Filarmónica Fraude - Flor de Laranjeira



Uma fraude que nasceu em 1968 e terminou em 1969. Lançou apenas um LP, Epopeia, embora os temas mais marcantes do grupo, como Flor de Laranjeira e Menino tenham sido editados em EP ou em single. O parto e talvez a própria concepção da Filarmónica Fraude, segundo parece, terá ocorrido entre o Entroncamento e Tomar, por certo em viagem de comboio pelo ramal de Tomar. A Filarmónica Fraude representou um corte com o tipo de música que se praticava em Portugal, combinando o ritmo da pop ou o rock progressivo com a música tradicional portuguesa. Era um sinal, mais um, de que as novas gerações já não suportavam a tonalidade cinzento-negro do regime que os professores Salazar e Caetano tinham a gentileza de pastorear, com zelo inexcedível. Estamos perante música com crítica social (no tema escolhido, a instituição visada é o casamento tradicional e burguês, a sua aparente respeitabilidade), mas de uma orientação completamente diferente daquela que vinha dos cantores ligados à oposição política tradicional. De certa maneira, era a cultura europeia e americana que estava a chegar por cá. Pena que os fraudulentos tivessem acabado com a mancomunação em tão pouco tempo. Seja como for, foi dali que também nasceu a ulterior, já após o 25 de Abril, Banda do Casaco.

sexta-feira, 21 de abril de 2017

Marcelo, Marcelo

A minha crónica no Jornal Torrejano.

A imagem das pessoas e o desejo que delas sentimos são regulados pelos mesmos mecanismos que regem os mercados onde se transaccionam os bens de consumo. Sempre que um produto é escasso o preço sobe. Quando existe em excesso, relativamente à procura, o preço desce. Aplicar esta estrutura de fixação do valor das mercadorias à imagem de uma pessoa – por exemplo, de um político – não é inadequado. É verdade que um político não é uma coisa, um bem transaccionável (ou pelo menos não deveria ser). No entanto, a chamada lei da oferta e da procura está assente não na mercadoria e no dinheiro, mas no desejo. Uma coisa torna-se valiosa porque é escassa para o desejo que ela ateia entre os seres humanos.

É aqui que o actual Presidente da República corre o maior dos riscos. Não é por, até aqui, ter suportado o governo de esquerda ou por, amanhã, deixar de o suportar e apoiar um governo de direita que ele corre riscos. Com Marcelo Rebelo de Sousa isso deixou de ser essencial. O perigo reside em começar a haver excesso de oferta de Marcelo. A sua imagem banaliza-se cada vez que ele surge sem que se vislumbre a necessidade da sua presença. Esta vulgarização da imagem presidencial está a degradá-la. Uma chacota contínua abate-se já sobre as suas múltiplas e inusitadas aparições. Não é aquela chacota raivosa que os adversários políticos faziam cair sobre Mário Soares ou Cavaco Silva. O escárnio não contém raiva mas um cada vez maior desprezo. Ora esta zombaria tem o poder de diminuir nos eleitores o desejo de escutar o Presidente.

Atrás da diminuição do desejo dos cidadãos vem o decréscimo da autoridade política. E um Presidente da República, no quadro constitucional português, precisa de uma clara e inequívoca autoridade política. Ele não é um adereço da República. É um jogador com uma legitimidade própria e com um papel central na regulação do sistema. Se a sua palavra e imagem se gastam nos assuntos mais corriqueiros ou afastados da função presidencial, isso acabará por desvalorizar a palavra política quando esta for necessária. Quem tem opinião sobre tudo, não tem opinião que mereça ser escutada. Quem está em todo o lado, acaba por tornar a sua presença uma irrelevância. E o país, com as dificuldades que enfrenta precisa de tudo menos de um Presidente irrelevante. O Presidente deveria saber que a máxima “nada em excesso” é um dos grandes princípios de sabedoria que os gregos da antiguidade nos legaram. Terá Marcelo Rebelo de Sousa tempo para a meditar?

quinta-feira, 20 de abril de 2017

Diálogos aporéticos (03) - Noli me tangere!

Francisco Arjona - Composición III (1984)

- Noli me tangere!
- Noli me tangere? Erudição religiosa a esta hora?
- Não tenhas ideias.
- O meu problema não é as ideias, é…
- É, é. A sério, não me apetece.
- Os meus dedos desejam tanto tocar-te.
- Nada de implorar, isso deixa-me doente. Que asco.
- Mas…
- Já te disse: não me toques!
- Não disseste, não. Disseste…
- Eu sei bem o que disse.
- Só que…
- Não consegues conter-te?
- Conter-me?
- Contar carneiros ou…
- Ou o quê?
- Calares-te, por exemplo.
- Não te posso tocar, não posso falar. Será que posso respirar?
- Ficaria grata se o evitasses.

quarta-feira, 19 de abril de 2017

O desprezo pela ciência

Bill Jacklin - The Benches, Towards the Rape of Reason (1992)

O problema social colocado pelo surto de sarampo e a manifestação de uma contra-cultura de saúde baseada na recusa da medicina científica e da vacinação como profilaxia da doença é a face, agora mais visível, de uma crescente desvalorização do papel da razão na vida dos homens. Se há um sector que tem sido extraordinariamente enriquecido e protegido pelo avanço da razão científica é o da saúde e da esperança de vida das pessoas. Quanto mais as práticas médicas assentam as suas raízes na ciência moderna maior é a eficácia na luta contra a doença. Curiosamente, o espectacular êxito da medicina científica tem tido a capacidade de suscitar estranhas oposições baseadas em crenças sem qualquer fundamento ou controlo racional.

Isto não significa dizer que a medicina seja infalível, que a ciência possua a verdade ou que a razão não tenha os seus limites. Os médicos e a medicina são falíveis, os conhecimentos científicos, em busca da verdade, vão sendo revistos, reformados ou abandonados e substituídos por outros mais de acordo com a realidade, a razão humana tem os limites inerentes à própria humanidade. Dito isto, convém sublinhar o seguinte: a ciência – e a filosofia numa outra perspectiva – é o campo de produção de crenças mais fiável, mais controlado e mais avaliado criticamente.

Os conhecimentos e práticas derivados da ciência são falíveis, mas o seu grau de fiabilidade é desmedidamente superior às crenças que contestam a pertinência da vacinação ou que põem em causa a medicina científica ou a própria ciência. A medicina científica – por vezes, designada com intenção pejorativa como medicina ocidental – é muito mais segura e capaz de enfrentar a doença do que as putativas medicinas não científicas e as crenças obscuras de uma opinião sem qualquer fundamento, que as redes sociais – esse território onde todos os devaneios pretendem aparentar-se à verdade – têm ajudado a espalhar.

Esta situação – que do ponto de vista da saúde, está ainda longe de ser catastrófica – torna patente que alguma coisa não está a funcionar nos sistemas de educação pública. Não se trata de uma falência do ensino das ciências. Elas estão bem representadas no currículo nacional e a sua aprendizagem tem registado claras melhorias. O problema é outro. Pode ser formulado da seguinte maneira: o facto de se ensinar, cada vez melhor, os saberes científicos não assegura uma educação racional e o desenvolvimento de atitudes críticas perante a realidade e as crenças do senso comum. Há uma dificuldade de transitar da transmissão de conhecimentos para o desenvolvimento de uma capacidade crítica e racional.

Todas estas crenças new age que proliferam um pouco por todo o lado são fruto de uma atitude que é incapaz de avaliar criticamente a razoabilidade das crenças. Os sistemas de ensino modernos e democráticos foram erigidos em nome da razão, transmitem crenças racionais e razoáveis, estruturadas nos currículos nacionais, mas têm tido pouca capacidade de fomentar nos indivíduos uma atitude e comportamento razoáveis. Daí que qualquer disparate, sem fundamento, propagado pelas redes sociais encontrar um sem número de adeptos que o põem em prática, muitas vezes com resultados trágicos. A racionalidade crítica tem limites, mas está longe de poder ser dispensada. Pelo contrário, é necessário que ela seja cultivada e transformada em atitude avaliadora das opções existenciais. Só ela, apesar da sua fragilidade, pode evitar tragédias que a opinião acrítica tem a capacidade de atear. O desprezo pela ciência só nos pode conduzir a lugares inabitáveis pelo homem.

terça-feira, 18 de abril de 2017

O Rumor das Ruas - 15. O olhar em sobressalto

Rafael Benet - Playa

15. O olhar em sobressalto

O olhar em sobressalto
na areia húmida,
o paraíso suspenso
entre toldos,
o marulhar da errância.

E era água e espuma:
o dia que passava,
no dedilhar dos dedos,
na rocha roída
pelo insecto do desejo.      

(O Rumor das Ruas, 1978)

segunda-feira, 17 de abril de 2017

Descrições fenomenológicas 25. A bela adormecida

Charles Marq - Double Composition II (1978)

A janela coa a luz fria da manhã, deixa ver o azul do céu, um azul a lembrar as manhãs gloriosas, em que a neblina se esquece de assomar com o seu manto branco e assim deixa os olhos embriagarem-se com um firmamento que ainda há pouco, no negro lutuoso que o cobria, estava infestado de enxames de luz, miríades de abelhas luminosas a cintilar sobre o cansaço dos homens, a resplandecer na sua imaginação, a fulgurar nas cavernas escuras dos corações adormecidos. Agora a luz já não é uma presença pontilhada mas uma onda gigantesca e indomável que cai sobre a terra e penetra pela janela, inunda o quarto de tonalidades amarelas e azuis, aqui e li pontuadas por um verde musgo, tão húmido e tão reluzente. Contra a parede da janela, uma cama estreita, separada do resto do quarto por uma cortina com padrões geométricos, inspirados certamente pela pintura de Vasarely, onde se descortinam grelhas lineares de duas cores, rosa salmão e azul safira, que se combinam em múltiplas figuras, deformadas pela ondulação do espaço, criando a ilusão de mundos multidimensionais a partir da superfície do tecido. Sobre a almofada, estendem-se uns cabelos negros, longos, revolvidos pela sono, com ligeiras ondulações, como se tocados por um vento suave vindo não se sabe de onde. As omoplatas sobem e descem em ritmo suave, compassado, sinal do sono ainda profundo, não maculado pelo infortúnio dos grandes pesadelos nem pela irrupção do poço do inconsciente das águas tumultuosas do desejo. A estreita cintura abre-se, num acesso de generosidade, em nádegas onde se vê, num jogo de luz e sombra, a marca do biquíni, símbolo de demarcação entre o território visível no espaço público e aquele que só a esfera da intimidade permite perscrutar, quando o corpo se abandona, despreocupado ou desejoso, ao olhar exterior. Um rio de sombra separa as nádegas e desce, cada vez mais intenso e obscuro, traçando a raia que permite compreender a separação das coxas. Um lençol branco, enrugado, oculta pés e pernas, centra o olhar do espectador na luminosidade que, ao cobrir aquele corpo em repouso, o deixa ver na harmonia recôndita que dele se desprende, como se o sono profundo o libertasse de todas as convulsões da vida, da dissonância introduzida pelo desejo ou pelos afazeres que os dias impõem. Adormecida e apaziguada, mergulhada na pequena cama, oferece o corpo para a contemplação de algum espírito invisível que a proteja do dia que já começou a rolar sobre si, ainda perdida na planície do sono, das horas de vigília onde a vida se prepara para desfazer a consonância entre o espírito e a carne que a noite, ao celebrar no sono o mistério da reconciliação, tinha com tanto cuidado posto em ordem.

domingo, 16 de abril de 2017

Viragens antropológicas

Caspar David Friedrich - Easter Mornig (1833)

Há na Páscoa dos cristãos uma orientação que tem nítidas semelhanças com a viragem antropológica operada por Sócrates e Platão, séculos antes, na filosofia. Quando esta emergiu, a sua preocupação centrava-se na compreensão da natureza. O magistério socrático e a reflexão platónica dirigiram o olhar para o homem, para a sua vida na cidade e, inclusive, para a sua vida no além. O que tem esta revolução especulativa a ver com os acontecimentos pascais?

Há, por vezes, uma tendência para olhar para as festividades do cristianismo e compreendê-las como um decalque e, por vezes, mera cópia das festividades pagãs. Contudo, falha-se o essencial. Falha-se a viragem antropológica que estando já desenhada no judaísmo se consumou no cristianismo. Na Páscoa cristã não se vive a ressurreição da natureza, esse acontecimento cíclico que fascinou os homens durante milénio, mas a ressurreição do próprio homem. Não é só a natureza que pela sua renovação anual que triunfa sobre a morte. Também o homem, a quem foi negada a renovação anual, pode triunfar da morte.

Primeiro com Platão e Sócrates e depois com Cristo, o homem dirige o olhar e a razão para si mesmo, interroga-se sobre a sua natureza, a sua conduta e o seu destino. Estes dois momentos da história ocidental são aqueles que possuem, ainda hoje, o maior potencial simbólico e o maior dos perigos. O perigo reside em poderem tornar-se num exercício de auto-contemplação narcísica da espécie humana. Contudo, este perigo extremo é compensado pelo conteúdo simbólica que tem permitido - e continua a permitir - encontrar aí um sentido que, estando para além do narcisismo específico, abra as possibilidades da aventura humana sobre este planeta.

sábado, 15 de abril de 2017

Atmosfera de leitura

Theodore Robinson - Young Woman Reading (1887)

Olhar um quadro como este de Theodore Robinson é um exercício de melancolia. Esta não nasce por ter deixado de haver leitores. Certamente, hoje em dia, haverá mais gente, muito mais do que há cem anos, a ler livros. A melancolia nasce do desaparecimento daquilo a que se poderia chamar a atmosfera da leitura. Em primeiro lugar, a leitura exige a suspensão do tempo da vida, exige uma predisposição para a inactividade, coisa que choca com os imperativos da vida contemporânea. Devemos estar sempre mobilizados, prontos para o movimento, abertos para a acção. Em qualquer lugar em que se esteja, o mundo da mobilização lembra-nos a imoralidade de sair dele para mergulhar na leitura. Em segundo lugar, os próprios leitores foram perdendo a capacidade de se fechar ao mundo, de mergulhar num universo de símbolos que suportam outros símbolos, os quais constituem desafio e mistério. O leitor não apenas está sempre a ser solicitado pelo mundo como foi educado para desejar essa solicitação, para fugir da vida solitária, para fugir inclusive do confronto consigo mesmo que toda a leitura, se não é puro entretenimento ou mera informação factual, implica. Desenha-se sempre uma secreta, ou nem tanto, má consciência pelo tempo concedido à leitura não utilitária. Quando se olha o quadro, a melancolia nasce da imediata compreensão de que a antiga atmosfera onde leitores e livros se encontravam foi levada pela voracidade da vida. Hoje somos todos, de uma ou de outra forma, leitores à deriva sem atmosfera que permita a lenta respiração que a verdadeira leitura impõe.

sexta-feira, 14 de abril de 2017

Voyeurismo

Francesco Clemente - Midnight Sun II (1982)

Não, o voyeurismo não é uma perversão da sexualidade. É apenas a reminiscência de um tempo em que o espaço público e o espaço privado não tinham nascido. Um exercício da memória e não do desejo.

quinta-feira, 13 de abril de 2017

O Rumor das Ruas - 14. Noite sem memória

Jack Delano - Foggy Night. New Bedford, Massachusetts, 1940

14. Noite sem memória

Noite sem memória,
terra e terror
onde dorme
a cidade
que me deste
quando célere caí
na voragem do Verão

(O Rumor das Ruas, 1978)

quarta-feira, 12 de abril de 2017

Um mundo velho

Leonard Misonne - Old people, old houses (1930s)

Um mundo de gente envelhecida só pode ser um mundo velho. Portugal, por exemplo, já é assim. O principal problema do país não é o défice, nem a dívida, tão pouco a economia ou a educação. É a demografia. Um mundo que teima em envelhecer, que resiste em renovar as gerações, é um mundo condenado à espera de ser substituído por outro que não negue a vida e a renovação desta. Os países e as comunidades também desistem de si.

terça-feira, 11 de abril de 2017

O desfazer do centro político

Jacques Henri Lartigue - Hendaye, France (1932)

A doença europeia reflecte-se muito claramente na evolução das eleições francesas. As sondagens (ver o artigo de Jorge Almeida Fernandes, no Público de hoje) tornam patente o estado patológico. Marine Le Pen (direita radical) e Jean-Luc Mélenchon (esquerda radical) valem mais de 40% das intenções de voto. Isto significa que, apesar da possibilidade real do centrista Emmanuel Macron vir a ganhar as eleições na segunda volta, o centro político se está a desfazer. Os eleitores estão a ficar cansados das manigâncias dos que têm ocupado o poder. Não é apenas o caso dos escândalos que envolvem François Fillon, o candidato da direita tradicional. É também a grande desilusão com o actual presidente socialista François Hollande, o qual foi incapaz de responder aos anseios que tinha despertado nos eleitores e que conduziram à sua eleição.

A doença europeia, que se reflecte no crescimento político de alternativas fora do centro-direita e do centro-esquerda, tem várias motivações. Os problemas trazidos pelo terrorismo islâmico e o conflito cada vez menos surdo entre modos de vida e visões do mundo que atravessa muitos países europeus não são estranhos a essa radicalização do eleitorado. No entanto, o dado principal dever-se-á encontrar na implosão do centro-esquerda europeu que, há muito, abandonou as suas políticas de equilíbrio e de abertura social, para se converter numa espécie de valete, de cariz bem servil, da direita liberal. O caso Hollande é sintomático. O afundamento do centro-esquerda - seja porque mingua eleitoralmente, seja porque executa as políticas da direita - retira ao jogo político e social o factor de equilíbrio que existia. A doença europeia reside na impossibilidade, por manifesta falta de vontade política, de manter os equilíbrios sociais que fizeram da Europa o lugar para viver mais apetecido e invejado. A situação francesa é mais um exemplo dessa doença crónica e, porventura, fatal.

segunda-feira, 10 de abril de 2017

Alma Pátria - 24: Alfredo Marceneiro - Amor de Mãe



Um nome grande do fado, Alfredo Marceneiro. Quando comecei a dar alguma atenção ao fado, coisa que não sendo recente também não é muito antiga, a voz de Marceneiro foi uma das que mais me chamou a atenção. Reconheci que não era por acaso nem injusta a sua fama. Aqui não é o lugar para contar a história dos artistas seleccionados, nem o blogger tem competência para o fazer (pode ver aqui uma biografia do grande Marceneiro). Não identifiquei o autor – talvez seja um poema de origem popular, o que o torna, como sintoma, mais interessantes – mas a letra deste fado é uma nova e exuberante lição de sociologia pátria. "Há vários amores na vida / Lindos como o amor perfeito / Belos como a Vénus querida / De tantos que a vida tem / Só um adoro e respeito / É o santo amor de mãe". Diz tudo do que se pensa do amor, das mulheres e mostra que, apesar do afadistamento geral que tocou, pelo menos em tempos, os homens portugueses, há um inextricável e irresolúvel complexo de Édipo. Isto ajudará a explicar a menoridade, essa dependência do seio materno, onde os portugueses gostam de se resguardar para não enfrentar o sério e difícil na vida. Elucidativo.

domingo, 9 de abril de 2017

A contra-cultura escolar

Juan Botas - School (1989)

O lamentável acontecimento ocorrido com finalistas do ensino secundário português num hotel em Espanha (ver aqui) é apenas o sintoma de um problema que é continuamente ocultado pelos responsáveis políticos da educação. E esse problema está, apesar da melhoria dos resultados obtidos por Portugal nos estudos internacionais sobre a educação, a afectar de forma sistemática o desempenho escolar dos alunos e, de forma indirecta, as expectativas legítimas de desenvolvimento que Portugal poderia ter. Esse problema está ligado à cultura escolar que muitos alunos, muitos mais do que deveria ser admissível, ostentam.

Essa cultura escolar é caracterizada pelo desprezo do saber – todas as áreas de estudo são consideradas uma grande seca – e, ao mesmo tempo, pelo desdém pelo esforço e pela superação de obstáculos. Chamemos-lhe uma contra-cultura escolar. O resultado destas atitudes é a indisciplina – geralmente, de baixa intensidade mas que boicota sistematicamente as aulas – e aprendizagens, quando existem, muito deficientes. A escola não é vista como lugar onde se aprende, mas onde se vai para conviver com os amigos, arranjar uns namorados ou namoradas, suportar uns professores menos simpáticos e triturar aqueles que não têm uma capacidade hiperbólica – repito, hiperbólica – para impor a autoridade.

Dito de outra maneira, para tentar ser o mais claro possível: o problema não está nos alunos que têm dificuldades em aprender. Está numa massa informe e de grandes dimensões que não quer aprender, isto é, que não quer adequar o seu comportamento às exigências que qualquer aprendizagem exige, sejam aprendizagens feitas por métodos mais tradicionais ou mais inovadores. Tentemos de novo ser claros: o problema principal não está nos métodos usados pelos professores. Está na atitude e na cultura dos alunos ou, melhor, na sua contra-cultura.

Os resultados são aprendizagens que não são feitas, comportamentos como os de Espanha ou a pandemia das praxes académicas daqueles que chegam ao ensino superior, onde o ídolo cultural da massa estudantil é Quim Barreiros (só isto diz muito sobre o problema). A consequência é tornar as escolas portuguesas num lugar estranho onde os professores querem ajudar milhares e milhares de alunos que não querem ser ajudados, que desprezam a escola e tudo o que ela implica. As escolas inventam e reinventam continuamente mil processos para auxiliar alunos que, pura e simplesmente, esperam que os professores os aprovem sem que eles tenham que fazer mais do que existir.

Esta contra-cultura do aluno português não é partilhada, felizmente, por todos. Há muitos alunos com uma atitude adequada e que se esforçam para superar as dificuldades e alcançar objectivos exigentes. Sejamos, porém e mais uma vez, claros: estes são uma minoria. Esta cultura adversa à aprendizagem, esta contra-cultura, tem dois suportes que a alimentam e protegem. Em primeiro lugar, as famílias. Muitas famílias ou não são capazes de educar os seus filhos ou não sabem quem têm em casa e fazem dos professores o bode expiatória dos insucessos dos rebentos. Em segundo lugar, o Ministério da Educação. Este e todos os outros que o antecederam. O Ministério da Educação é especialista em inventar reformas e contra-reformas, em tornar o trabalho de escolas e professores insuportável e, fundamentalmente, em desviar a atenção do problema central.

Para o Ministério da Educação – seja ele de que cor política for – o problema nunca é dos alunos, nem da cultura que trazem de casa e da rua ou do papel dos pais no sistema educativo. Para qualquer Ministério da Educação, os alunos querem aprender, os pais são muito empenhados, só que os professores são uns incompetentes e não ensinam. Logo, a única coisa a fazer é mais uma reforma do ensino, que massacre os professores, traga uns jogos florais para as escolas e, se for possível, dê mais poder aos pais dentro do sistema. Os responsáveis políticos nunca perceberam uma coisa. Para haver uma reforma do ensino é necessário que haja ensino, que os alunos estejam dispostos a aprender, que não tenham por objectivo boicotar as aulas ou, pura e simplesmente, deixar passar o tempo até que os professores, em desespero de causa, se sintam coagidos a passá-los. O problema está onde os políticos não querem mexer, na contra-cultura escolar que se instalou entre uma massa enorme de alunos portugueses.

sábado, 8 de abril de 2017

O Rumor das Ruas - 13. Um fulgor de fetos

Carlo Carra - Depois do pôr-do-sol (1926)

13. Um fulgor de fetos

Um fulgor de fetos
na penumbra da casa.

No soalho, livros,
restos de luz,
nuvens de cinza,
o gesto de mágoa
no verde da desolação.

(O Rumor das Ruas, 1978)

sexta-feira, 7 de abril de 2017

Diálogos aporéticos (02) - Imperativo

Edvard Munch - Cupid and Psyche (1907)

- Que horas são?
- É tarde, despacha-te.
- Perguntei-te as horas, dispenso ordens.
- Ordens?
- O despacha-te soou-me a imperativo.
- Estamos atrasados, não vou discutir pragmática da língua.
- Estamos? E queres discutir o quê?
- Nada. Estamos atrasado, já disse.
- Já disseste. Agora, o que dizes passa a ser uma autoridade. É isso?
- Por amor de Deus…
- Deixa a religião fora destas coisas.
- É uma maneira de…
- … dizer. É sempre o mesmo.
- O mesmo?
- Falta-te imaginação, repetes-te, só lugares comuns. É uma maneira de dizer, repete lá.
- A sério, não deixam entrar depois do concerto começado.
- Não deixam? Mas quem pensam eles que são?
- Não é perm…
- Cala-te! Agora tens procuração da organização?
- Despacha-te!
- Cala-te!

quinta-feira, 6 de abril de 2017

O clube dos escritores traídos

A minha crónica no Jornal Torrejano.

Há umas semanas noticiou-se que a editora de Agustina Bessa-Luís mandara retirar do mercado os livros desta autora. Parece que já não vendia o suficiente. Há claramente um conflito negocial, digamos assim, entre a editora e representantes da escritora. Não é esse assunto que me interessa, mas um que lhe está ligado. Agustina foi durante muitos anos, ao lado de José Saramago e de António Lobo Antunes, uma escritora com um amplo mercado. Como Saramago e Lobo Antunes, a escritora nortenha não escrevia literatura de entretenimento. Estávamos – e estamos, pois ainda é viva – perante uma autora brilhante, provocadora e, literariamente, exigente. Neste episódio, e independentemente da guerra negocial, há qualquer coisa que nos deveria fazer pensar.

Se olharmos para o século XX, há um conjunto de escritores bastante interessantes que entraram num limbo e que parecem estar a apagar-se da memória nacional. Sem ser exaustivo, recordo José Rodrigues Miguéis, Carlos de Oliveira, Vergílio Ferreira, José Cardoso Pires, Augusto Abelaira, Irene Lisboa, Fernanda de Castro, José Régio, Jorge de Sena, Vitorino Nemésio, Ruben A., Maria Judite Carvalho, Nuno Bragança e Fernanda Botelho. Haverá nesta lista esquecimentos imperdoáveis, mas isso é irrelevante. Outros ainda estão bem vivos nas escolhas dos leitores. Alguns dos autores referidos ainda terão o seu público, mas a sensação que se tem é que a memória das suas obras encolhe a cada dia que passa. É esta retracção da sua presença no espaço mental português que nos deveria preocupar.

O século XX foi ontem. E se a História é fundamental para o compreendermos, a literatura que nele se escreveu tem uma importância idêntica. Aquilo que somos – e o que somos é sempre múltiplo e diferenciado – repercute-se nas diferentes obras literárias. A complexidade e a riqueza do ser português do século XX estão plasmadas nessas obras. Ora se elas se forem apagando por falta de leitores, é uma parte – e das mais importantes – de nós que morre ao abandono. Não ler a literatura do século XX – e a dos anteriores, diga-se – significa que deixámos de nos interessar por quem somos. Ler as obras já de nada valerá a muitos dos autores do século XX, pois já morreram. No entanto, pode-nos valer a nós, ajudar-nos a saber quem somos e porque estamos onde estamos. Um povo que deixa – por desinteresse e ignorância galopante – apagar-se a memória da sua literatura é um povo que está doente, muito doente. Não façamos com os escritores do século XX um triste clube dos escritores traídos.

quarta-feira, 5 de abril de 2017

O perdão de Buda

Eddie Adams - Moment of execution, February 1, 1968

Consta que após disparar sobre o guerrilheiro Vietcong aprisionado, o general sul-vietnamita Nguyen Ngoc Loan, chefe da polícia nacional, se terá dirigido aos repórteres que assistiram à cena e dito: estes tipos matam muita gente do nosso lado, julgo que o Buda me há-de perdoar.  Não faço ideia se o Buda o terá ou não perdoado. Seja como for, a frase denota que havia uma clara consciência de que se estava a praticar algo de muito grave, cujo perdão estaria, se estivesse, a cargo do Buda. E é esta relação entre a prática do mal e a consciência dessa prática, presente em todos nós, que parece explicar a necessidade de mitos como o do pecado original e a consequente expulsão do paraíso. Esses mitos falam menos do hipotético paraíso e mais, muito mais, da realidade que é dada ao homem viver. Só uma desmesurada ilusão pôde fazer acreditar que era possível construir na terra um paraíso. Talvez um Buda possa perdoar as acções dos homens, mas é duvidoso que a eternidade chegue para perdoar tudo o que terá por perdoar.

terça-feira, 4 de abril de 2017

Descrições fenomenológicas 24. Encostada ao muro

Wassily Kandinsky - Diagram 17 (1926)

Dois muros desmedidos, talvez uns sete metros de altura, encontram-se, por uma razão geométrica desconhecida, para formar um ângulo recto, tão perfeito e tão límpido quanto o pode fabricar o artifício de mãos humanas. Grandes lençóis caiados de branco, rugosos e marcados pelo tempo, apesar do cuidado que se descobre na manutenção da pintura. O que eles ocultam não o consegue adivinhar o transeunte que se perca por aquelas paragens. São ladeados por um passeio calcetado com pedra escura. O sol cai, benevolente, naquelas superfícies, acentuando o brilho com que a cal salta para dentro dos olhos do espectador. Um obstáculo interpõe-se, porém, entre eles e a luz do astro, projectando uma sombra que divide o mais largo dos muros em dois triângulos rectângulos, exactamente iguais, um luminoso e o outro sombrio, como se a natureza, ao olhar a obra dos homens, decidisse criar, ainda que por instantes, o cenário minimalista de uma peça escrita por algum dramaturgo de vanguarda. Em baixo, encostada ao muro mais estreito, sem dar atenção ao jogo da luz e da sombra, está uma mulher de vestido de negro. Mangas curtas deixam ver os braços até aos pulsos, enquanto as mãos se escondem atrás do corpo. O cabelo, com ondas largas, é apanhado atrás, e termina a meio do pescoço. Os seios destacam-se com suavidade do torso, deixando perceber uma curvatura a irromper da planície do peito. A cabeça inclina-se para a frente, como se o cabelo fosse demasiado pesado, deixando ver, no muro, a mancha da sua sombra. O rosto, inerte, não consegue esconder uma funda preocupação. Imóvel e absorta, a mulher deixa-se penetrar pelos raios solares. Parece procurar neles uma luz que desfaça a pesada sombra que se desprende, em nuvens de sal e enxofre, do olhar.

segunda-feira, 3 de abril de 2017

O Rumor das Ruas - 12. Escolhias os dias

Milton Greene - Marilyn Monroe (1953)

12. Escolhias os dias

Escolhias os dias,
as pétalas de vidro,
pássaros de poeira
na sombra suada.
E tudo prosperava:
árvores no bosque,
murmúrios em casa,
o vigor da viagem
no solstício do silêncio.

(O Rumor das Ruas, 1978)

domingo, 2 de abril de 2017

Alma Pátria - 23: Simone de Oliveira - Desfolhada Portuguesa



Simone de Oliveira é uma presença constante, desde os finais dos anos cinquenta, no panorama da cultura popular portuguesa. De certa forma, ela acompanha a evolução da vida social e política portuguesa. Começa a sua preparação, enquanto cançonetista (era assim que se chamavam os cantores da música ligeira), numa "escola" do regime, o Centro de Preparação de Artistas da Emissora Nacional. A sua estreia dá-se em 1958. Onze anos depois, vence o Festival RTP com uma canção, Desfolhada Portuguesa, escrita pelo poeta e letrista comunista José Carlos Ary dos Santos. O delicioso desta história reside no facto da afirmação, na letra, "quem faz um filho, fá-lo por gosto" ter gerado uma bela controvérsia, o que levou a que se considerasse a canção como muito ousada. Nos tempos que correm essa ousadia é impossível de imaginar. Como eram tempos ingénuos, aqueles. Curioso também é ter passado na censura. Estávamos a começar a primavera marcelista e havia um certo amaciamento do regime, que desapareceu rapidamente para que ousadias destas e doutro calibre não desatassem por aí a fazer poucas vergonhas. Portugal era mesmo um triste país. Já agora, note-se a força que emana de Simone de Oliveira.

sábado, 1 de abril de 2017

O problema

A minha crónica em A Barca.

A adesão de Portugal à então CEE – hoje, União Europeia – estabilizou a democracia e permitiu aos portugueses tornarem-se um pouco menos miseráveis do que eram. O país abriu-se à modernidade e foi-se tornando mais cosmopolita. Essa adesão representou a escolha de um destino e uma abertura para dar uma maior solidez ao país. Contudo, há um elemento que, apesar de ser, aparentemente, bom, teve efeitos, do ponto de vista da psicologia social dos portugueses, negativos. Trata-se do dinheiro – em somas avultadas para os nossos padrões – que essa adesão fez entrar em Portugal. Permitiu fazer coisas inconcebíveis antes da adesão. Esse dinheiro, porém, veio facilitar todo um modo de vida cujos resultados se manifestam, de forma mais visível, nas dívidas pública e privada, nas falências dos bancos e nos processos judiciais envolvendo destacadas figuras das elites económicas e políticas.

Não é que Portugal fosse, antes da adesão à CEE, imune à corrupção e ao tráfico de influências. Não era, nem de perto nem de longe. Com uma cultura social baseada no favor, na cunha e no compadrio, os germes que iriam gerar a grande corrupção já estavam todos aí. A entrada de rios de dinheiro, dinheiro fruto do trabalho de terceiros, foi uma oportunidade que a tradicional habilidade dos portugueses não deixou de aproveitar com os resultados que agora todos começamos a perceber. O que é espantoso, depois de tudo o que se tem passado, é a aceitação que este descalabro encontra nas pessoas. É um facto que, por todo o lado, se diz mal dos políticos e das elites, mas isso, na verdade, não representa um desejo efectivo de pôr fim a este tipo de coisas.

Há falta de uma consciência cívica que exija uma maior transparência na gestão dos bens públicos. Continua a não existir, por parte da generalidade dos portugueses, a necessidade de exercerem um controlo muito mais apertado, como aquele que é exercido pelos cidadãos do norte da Europa, sobre os que gerem a res publica. É uma coisa que parece não lhes dizer respeito. É sentida, quando o é, como um caso de polícia e de tribunais. A questão que se deve colocar é a seguinte: o que faz de nós, portugueses, pessoas tão complacentes com os desmandos que ocorrem no bem comum? A resposta não é fácil, mas ela deverá combinar aspectos como a nossa velha cultura de compadrio, o desrespeito generalizado pelos bens da comunidade e o temor pela frugalidade que uma gestão adequada imporia a todos. E é neste emaranhado de razões que está o principal problema que o país enfrenta.