domingo, 28 de maio de 2017

A Flor Precária 6. Dezembro era um fruto amadurecido

Jeanloup Sieff - Anglais, Paris, 1969

6. Dezembro era um fruto amadurecido

Dezembro era um fruto amadurecido
na campânula de água da tua voz,
um eco na cinza do meu sangue,
chuva no fulgor do coração,
ruína nestas mãos secas e suadas.

Em teus dedos crepitava um segredo
de linho, uma rosa na paisagem.
Se Dezembro murmurava,
o vento trazia um lírio de luz
no barco do silêncio, na penumbra do cais.

(A Flor Precária, 1979)

sábado, 27 de maio de 2017

O poder

Heinrich Hoffmann - Hitler at a Nazy Party Rally (1934)

Um estudo efectuado na Colômbia, no âmbito das neurociências e da psicologia e tendo por objecto 66 terroristas paramilitares, mostrou que estes sofrem de um problema de "cognição moral". Orientam a sua acção pelos fins, não olhando a meios (ver aqui). O artigo parece, de forma surpreendente, suportar a ideia platónica de que a conduta não moral se deverá ao não conhecimento do bem. Não é, porém, o debate filosófico  que pretendo sublinhar. A questão é outra e resume-se a uma interrogação. Até onde iriam aqueles que lutam para alcançar o poder político ou para o manter, caso não existissem formas de limitar a sua conduta? Os casos extremos, como o terrorismo ou os regimes totalitários, iluminam-nos quanto à natureza do poder. Ele é o fim que justifica todos os meios para o alcançar e manter. E o poder democrático não será ele diferente? Não e sim. Mesmo democrático, o poder não deixa de ser um fim que justifica todos os meios. O que muda é a capacidade da sociedade civil e dos cidadãos, através do direito e da livre opinião, em obrigar os agentes políticos a uma conduta moralmente aceitável. A sociedade dotou-se de um conjunto de dispositivos que limitam a lógica da luta pelo poder, o obrigam a civilizar-se e a respeitar padrões éticos, cuja infracção os poderá afastar do poder. Do ponto de vista dos cidadãos, o mais importante não é se os políticos são ou não moralmente bons. O importante é que os mecanismos sociais que regulam a luta pelo poder obriguem os políticos a um comportamento eticamente aceitável. Quando estes mecanismos falham, sabemos por uma longa experiência - seja do terrorismo ou dos estados totalitários - que apenas se poderá esperar o pior.

quinta-feira, 25 de maio de 2017

O problema da defesa

Marc Chagall - War (1964-66)

Raramente estou de acordo com Donald Trump. Reconheço-lhe, contudo, inteira razão no que diz respeito ao esforço - ou à falta de esforço - europeu em matéria de defesa e, em consequência, de orçamentos militares (ver aqui). É cómodo desviar o dinheiro para gastos que rendem mais votos que os do esforço de defesa, ainda por cima se, desde há um século, os europeus estão habituados a que os norte-americanos os tirem das trapalhadas - e que trapalhadas mortíferas - em que se metem. A União Europeia se quer continuar a ser uma potência, e uma potência pacífica, na geopolítica mundial precisa de dar passos credíveis na construção de uma política de defesa. Recorde-se que o maior exército europeu, o inglês, vai sair da União Europeia, e que temos por vizinhos, a Rússia com as suas tentações autoritárias e imperiais, a Turquia, o segundo maior exército da NATO, em deriva anti-democrática e religiosa, para além das convulsões do Médio Oriente e do Norte de África. A NATO é um instrumento de defesa importante, mas, por si só, não chegará para dar credibilidade à defesa da União Europeia. Convém não esquecer que uma das prioridades da acção política é a segurança. E a segurança não é possível sem um esforço real que a torne credível. Se os europeus quiserem continuar a ser uma potência pacífica, então o melhor é levar as palavras do presidente americano a sério. É melhor olhar para a realidade e deixar de enfiar a cabeça na areia, isto é, nos bolsos do orçamento militar americano.

quarta-feira, 24 de maio de 2017

Graças à Grécia

Eugene Delacroix - Grecia moribunda en las ruinas de Missolonghi

A consagração  definitiva da política do actual governo foi dada, quem diria, pelo senhor Schäuble na analogia - uma analogia um bocado pífia, diga-se - que estabeleceu entre Mário Centeno e Cristiano Ronaldo (ver aqui). Parece inegável o mérito de Centeno e, por maioria de razões, de António Costa no que se tem passado. No entanto, como os socialistas não governam apenas apoiados em si mesmos, esse mérito terá de ser repartido pelos partidos à sua esquerda. O grande enigma de tudo o que se está a passar reside na atitude do BE e do PCP. Ter-se-ão convertido ao consenso? Seja qual for a resposta, a verdade é que eles têm, pela sua moderação e pela sua sensatez, dado credibilidade à presente solução política. Haverá, por certo, várias razões para isso. Gostaria, contudo, de destacar uma. Se ela não é a principal causa desta moderação é uma das principais. Essa causa tem um nome, aliás um nome nobre: Grécia. A experiência grega com as peripécias em torno do Syriza foram uma lição para toda a esquerda. As utopias morreram com o despedimento de Varoufakis, a responsabilidade pela governação e a capitulação perante as regras da União Europeia e do Euro. Os partidos à esquerda do PS terão percebido a mensagem e optaram por uma política que favorecesse, dentro dos limites do possível, os seus eleitorados em vez da fidelidade aos princípios ideológicos e aventuras - a saída do Euro, por exemplo - cujas consequências ninguém sabe quais serão e que a maioria dos portugueses pensa serem catastróficas. Tudo isto graças à Grécia. Sem o exemplo grego, nem este governo teria sido possível.

terça-feira, 23 de maio de 2017

A Flor Precária 5. Sons de cetim

Vincent van Gogh - Shoes (1886)

5. Sons de cetim

Sons de cetim
na lonjura
do caminho,
que pés pesados
percorrem
no áspero ardor
do chão a arder.

(A Flor Precária, 1979)

segunda-feira, 22 de maio de 2017

Do contorcionismo

John Ruskin - The Garden of San Miniato near Florence (1845)

Os jardins contorcem-se entre o estio e as trevas.
(Herberto Helder)

Que competência melhor para um funâmbulo do que aquela trazida pela arte da contorção. Como poderia equilibrar-me sobre o arame se não soubesse como me torcer e contorcer. E para quem acusa um infeliz funâmbulo de inconstância, de estar no mundo como um cata-vento, o que melhor se poderá retorquir do que, ostensivamente, apontar esse mundo e a volubilidade que o anima? Há dias li a história de uma daquelas almas rectas, sempre verticais, prontas julgar a moralidade dos pobres funâmbulos ou de senhoras volúveis. Odiava contorcionistas. Terrível era a sua ira, os olhos coriscavam e o dedo estava hirto de tanto ser posto em riste. Não se contorcia, nem quando estuprava meninas a entrar na puberdade. [Confissões do funâmbulo Américo de la Torre - 3]

domingo, 21 de maio de 2017

Um conflito inextinguível

Karola Pęcherskiego -  Warszawa, 1948

Ruínas como a da fotografia têm o condão de nos mostrar que, por vezes, o tempo - ou a nossa percepção do tempo fundada na mudança - acelera, destruindo um mundo e libertando outro que permanecia oculto, disfarçado pelo trabalho diário de recomposição dos efeitos da passagem do tempo. As catástrofes - produzidas pela natureza ou pelo homem - são dolorosos aceleradores temporais, reduzindo a escombros o que parecia, ao olhar incauto, eterno. Uma parte substancial da vida dos homens é gasta em operações plásticas do mundo em que vive, um disfarçar de rugas, tentativas desesperadas de manter aquilo que está condenado a perecer. O interessante nesse esforço não é o resultado mas o prazer com que é praticado. Esse prazer, nunca saciado, é, ao mesmo tempo, o efeito do fascínio da memória do passado sobre a vida do presente e resultado do desejo de eternidade com que a natureza dotou o coração da nossa espécie contra todas as evidências empíricas. É longo e inextinguível o conflito do Homem com o tempo.

sábado, 20 de maio de 2017

Silhuetas perdidas no cenário

Ara Güler - Edirne, Turkey, 1956

Não faço ideia o que está escrito na parede, portanto não foi a comunicação que me atraiu mal vi esta fotografia de Ara Güler. Poder-se-ia argumentar que o fascínio deriva de uma emoção estética originada numa certa combinação de linhas e formas, as quais casam com a ausência de cor. Será verdade, mas não toda a verdade. Há na foto uma revelação sobre a própria natureza humana. Educados para valorizar a humanidade e, nesta, a individualidade manifestada na singularidade dos rostos ou dos corpos, deparamo-nos com uma outra leitura tanto da humanidade como da individualidade. Não há rostos singulares nem, propriamente, seres humanos, apenas duas silhuetas perante um cenário esmagador. E esta revelação - a de que não passamos de silhuetas perdidas numa paisagem incomensurável - é causa suficiente para explicar o fascínio exercido pela foto de Ara Güler. Perante ela somos reconduzidos à nossa finitude e irrelevância, isto é, à nossa verdade.

sexta-feira, 19 de maio de 2017

O véu ideológico


A minha crónica no Jornal Torrejano.

A reivindicação pelo PSD e CDS do mérito pelo actual desempenho da economia portuguesa é não apenas uma jogada de oportunismo político mas, o que é pior, um sinal de que a direita ainda vive sob o véu ideológico que a conduziu nos anos da troika. Algumas das políticas do governo de Passos Coelho eram inevitáveis devido à situação em que nos encontrávamos e às exigências dos nossos parceiros. Houve, contudo, muitas coisas evitáveis e que qualquer governo dotado de bom senso deveria ter evitado. Era evitável o programa de ir além daquilo que a troika nos impunha. Era evitável a guerra, por motivos ideológicos, que o governo de então, com Passos Coelho na vanguarda, decidiu fazer a uma parte substancial do país, às classes populares, em primeiro lugar, e às classes médias, de seguida.

As políticas do governo suportado pelas esquerdas são muito diferentes das do governo anterior? Não e sim. A política de contenção dos gastos, de redução do défice e de cumprimento dos compromissos europeus continuam a ser aplicadas, até de forma mais eficiente. As políticas de austeridade, apesar da retórica em contrário, mantêm-se. Mesmo as devoluções de rendimentos na função pública estão muito longe de serem completas. O que mudou foi a maneira como o governo olha para o todo nacional. Mais do que pôr fim à austeridade, o mérito deste governo – com a ajuda, diga-se, do Presidente da República – é o de ter posto fim a uma espécie de guerra civil simbólica, mas de resultados muito reais, que o anterior tinha desencadeado. Quando se fala em distensão do clima político e social, o que se quer dizer é que o espírito de comunidade foi reconstruído pela actual maioria. Onde o governo anterior excluiu, as esquerdas estão, lentamente, a incluir.

E esta inclusão, muitas vezes simbólica, não é pouca coisa. Contribui para criar espírito de inclusão no todo nacional e, em vez de humilhar as pessoas, como foi feito muitas vezes pelo governo de Passos Coelho, ajuda-as à ganhar coragem para enfrentarem a difícil situação em que não deixámos de estar. Todos nos sentimos agora parte da comunidade política. Preocupante é que a direita, em vez de reconhecer a falência da sua deriva ideológica, continua saudosa do projecto de perseguição das classes populares, através de uma legislação feroz de restrição de direitos, e das classes médias, por intermédio da política fiscal. Esperemos apenas que as esquerdas não embandeirem em arco com os resultados obtidos até agora e não entreguem a governação aos que continuam dispostos a fazer de Portugal um país da América Latina.

quinta-feira, 18 de maio de 2017

A Flor Precária 4. Vestígios de Verão sobre o rio

Ricardo Asensio - Reflections in the river

4. Vestígios de Verão sobre o rio

Vestígios de Verão sobre o rio,
os olhos lacrimosos de luz,
o restolho verde das águas.

Da janela avistavam-se barcos,
os remos lívidos do remorso,
a margem de cal ao anoitecer.

Se então adormecíamos,
sonhos de areia e calcário,
a ferida no fundo do leito.

No silêncio, caía a tempestade,
tremiam as torres do castelo
presas ao lépido limo da loucura.

(A Flor Precária, 1979)

quarta-feira, 17 de maio de 2017

Alma Pátria - 27: Adriano Correia de Oliveira - Trova do vento que passa



Voltamos à face oculta da alma pátria. Como José Afonso, Adriano Correia de Oliveira chega à canção de intervenção pela mediação do fado de Coimbra. Entre 1960 e 1962, grava quatro EP's (discos com 4 faixas), todos eles dedicados à canção de Coimbra. A sua orientação como cantor de intervenção surge de forma nítida no quinto EP, editado no ano de 1963, Trova do Vento que Passa, onde todos os poemas cantados são de Manuel Alegre. Consta que foi um grande êxito comercial. A versão cantada da Trova do Vento que passa é apenas um pequeno excerto de um poema longo pertencente ao ciclo Praça da Canção. Há sempre alguém que semeia / canções no vento que passa, diz o poema de Alegre. Uma confissão, ao mesmo tempo, da esperança e da impotência que habitava o coração dos oposicionistas naqueles dias já tão longínquos. Interessante na música portuguesa é o paradoxo de o sebastianismo e a saudade, manifestações ideológicas conectadas com a direita, terem encontrado as suas mais autênticas vozes em cantores de intervenção, como Luís Cília, José Afonso e Adriano Correia de Oliveira.

terça-feira, 16 de maio de 2017

Um deserto gelado

Ralph Steiner - Sapling in the Snow, 1977

Uma doença. Não é de bom tom criticar o Islão. Desencadeia-se, mesmo entre muitos ateus, uma súbita paixão pela religião e os dedos acusadores escrevem de imediato a etiqueta islamófobo. E no entanto o Islão - e não apenas as suas versões terroristas - é um problema, criado de forma consciente por muitos dos seus seguidores, para o nosso modo de vida. Veja-se como em aspectos absolutamente impensáveis e ridículos a intolerância da cosmovisão islâmica se manifesta. Um clérigo islâmico saudita pediu, através do Twitter, à FIFA para criar uma lei que proíba os festejos cristãos (por exemplo, jogadores que se benzem) após a marcação de golos. É evidente que a FIFA não vai abrir a boca sobre o assunto, mas ele foi lançado, veremos quanto tempo vai demorar a que manifestações religiosas sejam interditas nos estádios de futebol. Pessoalmente, nada tenho contra Islão, desde que respeite os direitos humanos, entre eles a liberdade dos indivíduos, a possibilidade de cada um seguir a sua própria consciência. O Ocidente tem um problema enorme entre mãos e não sabe como lidar com ele. Em 1781, em nota de rodapé ao Prefácio da primeira edição da Crítica da Razão Pura, Kant escrevia: "A nossa época é a época da crítica, à qual tudo tem que submeter-se. A religião, pela sua santidade, e a legislação, pela sua majestade, querem igualmente subtrair-se a ela. Mas então suscitam contra elas justificadas suspeitas e não podem aspirar ao sincero respeito, que a razão concede a quem pode sustentar o seu livre e público exame". A única forma de nós, ocidentais, mostrarmos respeito pelo Islão é submetê-lo, como o fizemos ao Cristianismo, à severa crítica da razão. Isto para que a nossa paisagem não se transforme, mais cedo ou mais tarde, num enorme deserto gelado. 

segunda-feira, 15 de maio de 2017

Os piores, se exceptuarmos todos os outros

Hiroshi Sugitomo - Cascade River, Lake Superior, 1995

Consta que os republicanos começam a ficar fartos do senhor Trump (ver aqui). Esta experiência americana deveria ser acompanhada com muita atenção pelos eleitorados das democracias liberais. É empolgante a retórica contra os políticos e ainda mais empolgante é incensar as virtudes dos não políticos - as gentes da sociedade civil - para o exercício do poder. As pessoas não percebem que os políticos obedecem a uma racionalidade e sabem que o seu comportamento deve ser razoável, permitindo às pessoas saberem aquilo com que contam. O cidadão não político que, como Donald Trump, decide, por um acto de puro voluntarismo destituído de qualquer fundamento cívico, entrar na corrida para o poder não obedece a nenhuma razoabilidade. O que move esse tipo de cidadão é o capricho e um ego desmesurado, os quais convivem, por norma, com tendências autocráticas, com a necessidade de eliminar todos os constrangimentos que as sociedades civilizadas têm colocado a quem ocupa o poder. O jogo de contra-poderes que este tipo de actores detesta não foi construído para tornar o jogo político mais exaltante. Foi construído para defender o homem comum dos delírios de quem ocupa o poder. Quando o homem comum, envolvido no nevoeiro da ignorância e do preconceito, não percebe isso, o resultado é o triste espectáculo que, quase todos os dias, nos chega dos EUA, onde uma democracia sólida e funcional é constantemente confrontada com a arbitrariedade de quem chegou ao poder. Parafraseando um político que falava da democracia, podemos dizer que os piores homens para ocupar o poder são os políticos, exceptuando todos os outros.

domingo, 14 de maio de 2017

Futebol e identidade

Nicolas de Staël - Futbolistas (1952)

Sempre que há acontecimentos desportivos com grande impacto mediático - e só têm impacto mediático porque interessam às pessoas - ouve-se um coro de imprecações contra a suposta alienação que esse acontecimento traz. Na verdade, tudo isto não passa de um equívoco. A pertença desportiva pode ser tanto como a pertença religiosa, pertença política ou outro tipo de pertenças, pode ser, dizia-se, um elemento estruturante da identidade pessoal. Em vez de representar uma forma de estranhamento (alienação) a si mesmo, pode significar uma estrutura de solidificação da identidade e de descoberta de si. O facto do fenómeno desportivo - seja através do futebol como na Europa, na América Latina e outras partes do mundo, seja através de outras modalidades - mover tantas pessoas é um sinal de que ele oferece um nível de pertença de que elas sentem necessidade, como se as estruturas identitárias fundadas na religião e na política, com as suas dimensões salvíficas, fossem incapazes de preencher a totalidade de respostas identitárias que os indivíduos, na sua generalidade, necessitam. O que é curioso é que esta identidade desportiva assenta na incerteza, na sorte, no acaso, na precariedade da glória, tudo factores inerentes ao jogo. Uma identidade sempre e constantemente desafiada e posta à prova. E é esta provação contínua, composta por vitórias e derrotas, que reforça a identidade, através da composição de narrativas onde sobressai a gesta dos nossos e a malevolência dos outros, tudo fruto de uma imaginação activada pelas incertezas do jogo. E é deste desafio colocado pela incerteza que a identidade dos indivíduos - de muitos, não de todos, claro - também se alimenta, se estrutura e se solidifica.

sábado, 13 de maio de 2017

A Flor Precária 3. Água, sol e verde nas palavras

Claude Monet - Poplars along the River Epte, Autumn (1891)

3.  Água, sol e verde nas palavras

Água, sol e verde nas palavras,
rios de sílabas,
fragmentos,
lábios
e cascatas.

As palavras
estão
por dentro do rio
e nas margens
fogo,
erva seca,
pedaços de letras,
espirais de verde
a arder
na boca desta água.

(A Flor Precária, 1979)

sexta-feira, 12 de maio de 2017

Ideologia

Margareth Bourke-White - Kentucky Flood, February 1937

A fotografia de Margareth Bourke-White vale por um tratado sobre ideologia. Torna patente, numa cena quotidiana, a contradição entre o mundo das ideias, dado no cartaz publicitário, e a realidade, entre a felicidade oferecida pelo modo de vida americano e a desventura de quem está na fila da sopa dos pobres. Contudo, a crueldade da fotografia vai mais longe. Não se limita a desconstruir a ideologia do american way of life, torna patente os fundamentos racistas em que ela se fundamenta, como se a felicidade dos brancos estivesse intimamente dependente do sacrifício dos negros. Pode-se, porém, ir mais longe e ver esta fotografia exemplificando não apenas a ideologia do american way of life mas toda e qualquer ideologia. A ideologia, seja ela qual for, seria então a operação pela qual se oculta que a felicidade de uns assenta na transformação de outros em vítimas sacrificiais. Dito de forma mais radical: a ideologia é processo pelo qual se oculta a prática contínua de sacrifícios humanos.

quinta-feira, 11 de maio de 2017

Sonhos que andam

Imogen Cunningham - Dream Walking (1968)

Esta fotografia de Imogen Cunningham data de 1968. Não sei se ela foi um retrato deliberado da época ou se, por uma motivação oculta à consciência, a fotógrafa norte-americana retratou o espírito do tempo. Naqueles dias, julgou-se, que os sonhos podiam caminhar, inocentes, pela floresta da vida. Agora que o ano de 1968 se aproxima perigosamente do quinquagésimo aniversário sabemos bem onde nos levaram aqueles sonhos e o destino dos sonhadores. É o peso de vivermos na posteridade dos acontecimentos. Uma coisa foi confirmada. A vida é uma floresta. Contrariamente, ao que os sonhadores da época ostensivamente queriam fazer acreditar, essa floresta não era o habitat próprio da inocência. Na verdade, em todas as florestas existem lobos maus à espera de capuchinhos vermelhos. E nos acontecimentos desse longínquo ano de 1968 havia muitos capuchinhos vermelhos mas também um número razoável de lobos maus, como a velha história infantil desde há muito ensinava. 

quarta-feira, 10 de maio de 2017

Xadrez

Marcel Duchamp - A partida de xadrez (1910)

O xadrez sempre me fascinou. Não pelas qualidades que exige. Sentido estratégico, capacidade de antecipar o pensamento do adversário, poder combinatório da mente. Tudo isso, por valioso que seja, está longe de explicar o meu fascínio. O que me espanta no jogo é o seu poder negativo. O jogador esquece-se do mundo e substitui o império da acção por aqueles movimentos pré-anunciados das peças. O sortilégio do xadrez não está nele ser uma alegoria da vida, do confronto que esta suscita. Reside, pelo contrário, dele ser uma negação dessa mesma vida, uma suspensão do curso normal dos acontecimentos, um misto de eternidade e morte, se é que uma é diferente da outra. [Confissões do funâmbulo Américo de la Torre - 2]

terça-feira, 9 de maio de 2017

O quarto-estado

Giuseppe Pellizza da Volpedo - Quarto Stato (1901)

John Charles Dollman - Famine (1904)

Em 1901, Giuseppe Pellizza da Volpedo pintava o quarto-estado como uma força heróica que tinha nas mãos, em marcha lenta mas inexorável, a realização do destino da humanidade. Traria à Terra, nesse seu passo incansável, o Reino de Deus, sem Deus, certamente, mas mesmo assim um paraíso onde haveria de correr leite e mel. O inglês John Charles Dollman, em 1904, tinha uma visão radicalmente diferente do quarto estado. Uma matilha esfaimada pronta a seguir a primeira pitonisa com pretensões a rainha absoluta. As eleições francesas mostraram que o mundo se deixa descrever com mais propriedade pelo quadro de Dollman do que pelo de Volpedo. Quando a dor é grande, o dom profético sempre foi mais convincente do que o artifício teórico.

segunda-feira, 8 de maio de 2017

A Flor Precária 2. O cinzento corre fluido

Jackson Pollock - Untitled 4 (1944-45)

2. O cinzento corre fluido

O cinzento corre fluido
por toda a parte.
Inundou a água do rio,
a fachada do palácio,
alcatroou de penumbra
a súbita sombra da cidade.

Betão agreste e macilento;
crianças desgrenhadas,
olhos de pedra.
Tudo, tudo,
nem branco nem negro,
uma cinza de cinzento.

(A Flor Precária, 1979)

domingo, 7 de maio de 2017

Taxionomia alimentar

Jackson Pollock - Night Mist (1945)

A história rumoreja. Não são palavras, grandes proclamações, mas meros murmúrios, indefinidos rumores. Inaudíveis? Não e sim. Não, porque são murmúrios e rumores e se a linguagem não é articulada, não deixa de haver emissão, ainda que débil, de sons que, como o canto e o voo das aves, podem ser interpretados. Sim, porque, apesar de proliferarem pelo espaço público os áugures, ninguém está interessado em fazer o silêncio necessário para que murmúrios e rumores possam ser escutados. No meio da algazarra geral, ela, a história, vai tecendo, inexorável, o seu manto, apesar das mil pretensões dos homens, que mais que fazê-la são feitos por ela e, por muito que isso os contrarie, para ela, alimento sempre escasso para uma voracidade insaciável. Perante isto, a esquerda, a direita e o centro não passam de uma taxionomia alimentar.

sábado, 6 de maio de 2017

Alma Pátria - 26: Fernando Farinha – Fado da Descrença & Tem Juízo Rapaz



Fernando Farinha era um dos fenómenos da Rádio nos anos sessenta e, presumo, cinquenta. Era conhecido como o Miúda da Bica, referência ao bairro da Bica, Lisboa, para onde veio residir em criança, vindo do Barreiro. Começou a cantar muito cedo. Esta gravação parece ter sido feita quando ele tinha apenas onze anos. É uma curiosidade, pois trata-se de um velho 78 rpm. Eis como soava, mais ou menos e com mais ou menos ruídos de fundo, um disco nos finais dos anos trinta ou início dos quarenta. Vale também a pena dar atenção às letras dos dois fados cantados por um miúdo daquela idade. As letras dos fados, ainda por cima cantadas por uma criança de onze anos, são mais uma bela lição de sociologia pátria. É verdade que naqueles tempos a ideia de trabalho infantil não tinha sentido ou não tinha sentido pejorativo que justamente veio a adquirir décadas mais tarde. O pessoal amadurecia cedo naqueles belos tempos (Belos Tempos é um fado cantado pelo Fernando Farinha, que também é autor da letra).

sexta-feira, 5 de maio de 2017

O poder e a vontade de poder

A minha crónica no Jornal Torrejano.

Um artigo do jornal Público dava conta de um estudo da psicóloga experimental portuguesa Ana Guinote (University College de Londres) sobre o poder. Uma das evidências da investigação é que a correlação entre inteligência e ocupação de lugares de poder é fraca. Para ocupar lugares de poder mais importante do que ser inteligente é parecer inteligente. Também a competência técnica não é uma qualidade fundamental para se ocupar o poder. É muito mais importante parecer competente do que sê-lo efectivamente. Poder-se-á dizer que o poder – seja político, empresarial ou outro – é um lugar de aparências e que a sua conquista depende mais da representação teatral do que da posse efectiva de capacidades intelectuais e técnicas.

Se as capacidades cognitivas não são um factor central na conquista e exercício do poder, este não depende apenas da mera aparência ou da representação teatral. Há capacidades e traços de carácter que estão, segundo o estudo, ligados ao poder. Assertividade, decisão, autoconfiança, determinação, optimismo, carácter dominador e visão clara fazem parte das características das pessoas, homens ou mulheres, ligadas ao poder. Dito de outra maneira, alcançar o poder e mantê-lo depende muito mais da vontade do que da inteligência teórica ou mesmo prática. Espalhou-se na cultura ocidental, devido à hipervalorização da inteligência e da competência técnica, um equívoco. Este equívoco leva-nos a pensar que o mundo seria melhor se fosse governado por pessoas muitos inteligentes e de grande competência.

A inteligência e a competência não são, por si mesmas, inimigas do poder, mas são inúteis ou mesmo perigosas se não forem acompanhadas pela vontade decidida, determinada, autoconfiante e centrada em objectivos claros. Na verdade, o exercício do poder tem mais a ver com a firmeza e determinação do pastor na condução de um rebanho do que com a elaboração de teorias explicativas do mundo ou a invenção de dispositivos técnicos. Isto ajuda-nos a perceber por que razão muitos actos eleitorais têm o resultado que têm. O eleitorado confia, ainda que inconscientemente, na pessoa assertiva e determinada, mesmo que mentirosa e egoísta, e suspeita da pessoa inteligente ou, como disse numa entrevista também ao Público o psicólogo Kevin Dutton, “as sociedades sempre precisaram de pessoas impiedosas, charmosas e que mentem”. O poder é o resultado da vontade de poder e não de outra coisa qualquer.

quinta-feira, 4 de maio de 2017

Das ideias

Santiago Rusiñol Prats - Almendros en flor (1899-1904)

As ideias são melodias defuntas (Cioran, Le Crépuscule des Pensées)

Intimamente, embora durante muito tempo não o conseguisse formular claramente, sempre soube que havia alguma coisa de errado com as ideias. Nelas habita um espírito já morto ou como diz Cioran elas são melodias defuntas. Isto significa que delas se retirou a música e a vida que as teriam originado. Como tenho, enquanto funâmbulo, uma acentuada propensão para fazer aquilo que me é contrário, decidi dedicar a vida às ideias e, para me enganar, aparentar por elas uma paixão que, na verdade, nunca tive. Apesar do pathos exibido, com certa moderação, é certo, elas nunca me tocaram o espírito ou a alma. Deslizam diante de mim, convidam-me, por vezes, para uma ou outra festa, chegam a fazer-me propostas sedutoras, explicam-me até que eu mesmo não sou mais do que a ideia que tenho de mim.  Em vão. Não consigo levá-las a sério. [Confissões do funâmbulo Américo de la Torre - 1]

quarta-feira, 3 de maio de 2017

A Flor Precária 1. Água de cinza

Edward Hopper - White River at Sharon (1937)

1. Água de cinza

Água de cinza
na sombra do rio,
flores e frutos,
núpcias de terra
na casa caiada
dos teus olhas.

E tudo sufoca
na luz e na lâmina
dessas mãos:
o azul que abre
a porta,
as aves no alvor
da viagem.

(A Flor Precária, 1979)

terça-feira, 2 de maio de 2017

A questão religiosa

A minha crónica em A Barca.

O Iluminismo assentou a sua avaliação – claramente, negativa – da religião revelada em três pilares críticos: a crítica do preconceito, da superstição e da autoridade que não advenha da razão. Segundo os iluministas, a religião revelada manteria uma atitude anti-racional fundada em preconceitos e superstições, na ordem do conhecimento, e na autoridade, no que diz respeito a matérias morais e à própria crença dogmática. Esta crítica racionalista tornou-se no Ocidente culto o padrão com que se julga ainda hoje a religião. O que levanta, pelo menos, dois problemas.

Em primeiro lugar, a religião tem dimensões que estão muito para além daquilo que é consignado num sistema de crenças explicativas do mundo ou num código moral. A vida religiosa assenta na relação do indivíduo consigo mesmo e com a transcendência. O essencial de uma religião é a vida espiritual que proporciona. É desta vida espiritual que, no decurso da história da humanidade, se soltaram os elementos que forneceram as primeiras explicações racionalizantes do mundo (os mitos que compõem todas as religiões) e as normas de conduta que regeram – e regem em muitas culturas – a vida das comunidades. Estes últimos elementos são aqueles que, pela sua natureza acidental e histórica, se transformam em preconceitos e superstições. No entanto, eles não fazem parte daquilo que é fundamental numa religião, apesar de serem, muitas vezes, o seu aspecto mais visível e também o mais polémico. Dito de outra maneira, a crítica do Iluminismo à religião deteve-se no acidental e não compreendeu o essencial.

Em segundo lugar, a dissolução crítico-racionalista da religião, o subestimar da sua importância na vida das comunidades, está a tornar o Ocidente incapaz de perceber os problemas que o mundo islâmico lhe coloca, tanto fora de fronteiras (o último caso é o da Turquia e da sua deriva anti-secular) como dentro (o terrorismo ou a não aceitação do modo de vida ocidental por imigrantes muçulmanos). Diversos sectores islâmicos vêem no abandono do cristianismo por parte dos ocidentais uma janela de oportunidade para expandir o Islão. Não tendo passado pelo Iluminismo crítico, estão convencidos de que o actual vazio religioso não poderá perdurar, o que abrirá ao Islão um futuro risonho na Europa. É por estes motivos que a religião não pode continuar a ser considerada pelos europeus uma superstição ou uma irrelevância. E é por eles também que se deve ter muito cuidado em deitar fora o cristianismo, pois corremos o risco de despejar o bebé com a água do banho.

segunda-feira, 1 de maio de 2017

1.º de Maio

Manifestação em Haymarket, Chicago, Maio de 1886

Os acontecimentos (ver aqui e aqui) que conduziram à celebração do 1.º de Maio possuem no seu cerne uma reivindicação que, apesar de continuamente referida, acaba por se ocultar no acto da referência e na forma como esta é lida. A exigência da jornada de trabalho de oito horas é muito menos um problema laboral e muito mais uma questão civilizacional. O que está em jogo é o tempo, a matéria efectiva da vida, e a possibilidade de cada um fazer com o tempo aquilo que entender, para além de responder às necessidades que a condição humana impõe. Para lá das leituras políticas que se fazem do 1.º de Maio, sejam revolucionárias ou reformistas, há algo muito mais importante: a necessidade dos homens se libertarem do trabalho, da submissão à pura necessidade, de poderem gerir o tempo que lhes foi concedido. É nesta afirmação da libertação da submissão à necessidade representada pelo trabalho que o 1.º de Maio encontra um significado universal que vai muito para lá da questão de classe e da luta de classe. Faz parte do processo civilizacional que visa libertar os seres humanos, todos eles, da submissão à natureza, à sua própria natureza.