terça-feira, 29 de agosto de 2017

Azar dos Távoras

Guillermo Pérez Villalta - El azar (ou Los augurios) (1980)

Os episódios das viagens ao Europeu de futebol, à China e aos Estados Unidos (é o que se sabe, por enquanto) por parte de membros do governo, deputados da oposição e dirigentes da função pública (também, por enquanto, o que se sabe) mostra como se estava longe de reconhecer a necessidade de separar o mundo do Estado e o mundo da Economia privada. Pelo contrário. Agora que o aparelho judicial acordou para o problema, não deixa de haver nas demissões e processos judiciais em curso uma ironia ou, melhor, um azar.

Desde a Gloriosa Revolução, em Inglaterra, no século XVII, que o Estado foi capturado por interesses privados muito específicos. Contrariamente ao que se afirma, ele não existe – nunca existiu – como representante universal dos cidadãos de um determinado país. Ele existe para que os privados prosperem. É aqui, no prosperar dos privados, que o Estado moderno encontra a sua causa final. Certamente, não está interdito a qualquer cidadão prosperar. É uma possibilidade universal, mas essa possibilidade nunca se actualiza de forma a que todos ou mesmo grande parte prosperem.

A ironia está em que os servidores do Estado são, pela natureza do próprio Estado, servidores dos que prosperam. Existem para que estes prosperem e se mantenham prósperos. Isto implica, digamos, uma inclinação mútua. O mais natural seria que os que prosperam recompensassem quem toma conta da situação. Em Portugal, passado o entusiasmo delirante da revolução, o Estado foi assumindo o papel que as sociedades modernas lhe atribuem. Assumiu como? Também com entusiasmo, através do casamento entre os que dominam o Estado e os que prosperam. Um casamento feito, na inocência de uma descoberta, à vista de todos.

Estes episódios das viagens, como outros que envolvem políticos, servidores do Estado e gente que prosperou, são apenas o resultado desse animado, visível, tolerado e prolífico conúbio. Um verdadeiro casamento de amor. O problema é que o matrimónio choca aqueles que não prosperam e estes são os detentores de grande parte dos votos. Para que o Estado sirva com eficácia aqueles que prosperam é necessário que finja que presta um serviço universal, para evitar a perda de tempo em aplacar a revolta dos muitos inaptos a prosperar, isto é, a manter a ordem pública para que se os negócios cresçam.

Estes casos, que chegaram agora à esfera pública, ocorrem assim numa fase de transição entre uma situação onde o casamento entre as duas partes era permitido sem grandes estados de alma e o novo tempo em que o amor entre o Estado e os que prosperam tem de se consumar em affaires secretos, em alcovas longe dos voyeures invejosos e impenitentes. Aqueles que foram apanhados neste meio tempo tiveram o que se chama o azar dos Távoras. Ou, numa versão mais ao gosto popular, tiveram azar em serem apanhados com as calças na mão.

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