quinta-feira, 19 de outubro de 2017

A vida normal

A minha crónica no Jornal Torrejano.

Há alturas em que o jeito de ser português mostra os seus limites. O ano de 2017 é uma dessas alturas. Não chega a nossa cultura do desenrascanço (palavra horrível com que embrulhamos a incompetência na esperteza saloia). Não chega este ir fazendo que faz mas não faz. Não chega o modo de ser português que alguns cantaram perante os rigores do norte. Não chega esse riso manhoso de quem coça a cabeça e diz: deixa-os poisar! Todos conhecem, ó ironia das ironias, essa expressão, tão ao gosto popular, que resume, melhor que todas as outras, o modo de ser português: deixa arder que o meu pai é bombeiro.

Este ano de 2017 é o resultado de anos, décadas, talvez séculos, de deixa-os poisar e deixa arder que o meu pai é bombeiro. Só que já não há sítio onde poisar e bombeiros que cheguem para tanto incêndio. Eu sei, nós somos boas pessoas, e as boas pessoas odeiam o rigor. Nós somos criativos (deixem-me rir), e os criativos abominam a organização. Nós somos simpáticos, e as pessoas simpáticas detestam a disciplina. Nós gostamos de coisas fáceis. Nada de exigências, vamos lá devagar que é assim que se chega ao longe. Esta atitude de autocomplacência corrói os indivíduos, as famílias, as instituições. Corrói, acima de tudo, o Estado.

Este ano está a ser anormal? Está, mas é nas anormalidades que se vê como a nossa normalidade é doentia, malsã, absolutamente perigosa. A nossa vida normal não passa de uma brincadeira pouco séria. A nossa vida normal entregou o Estado e as instituições ao compadrio, à corrupção, à preguiça, ao branqueamento de comportamentos. As seitas confrontam-se na praça pública, movidas pelo seu desejo de ocupar o poder, e nós, cidadãos, em vez de sermos rigorosos, organizados, disciplinados e exigentes connosco e com quem está no poder, aceitamos tudo desde que venha dos nossos. A nossa vida normal é viver à beira do abismo. Quando há uma anormalidade, como este ano, damos um passo em frente.

Eu gostava que esta hora difícil fosse a hora de um recomeço, um tempo em que tomássemos consciência de que a nossa vida normal é perigosa, muito perigosa e começássemos a ser mais exigentes e rigorosos com as instituições, com os poderes, mas, em primeiro lugar, connosco. Podemos acusar, para salvar a boa consciência, os políticos e as instituições, mas isso seria esquecer que fomos nós que os elegemos (aos actuais e aos anteriores) e que não lhes exigimos nada. A nossa vida normal é passar cheques em branco e depois queixarmo-nos que nos levaram o pecúlio. Será desta que iremos acabar com a nossa vida normal? Ou continuaremos a dizer: deixa arder que o meu pai é bombeiro?

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