sexta-feira, 16 de março de 2018

Paixões políticas

Francis Bacon, Self Portrait with Injured Eye, 1972

Talvez o problema resida no facto da identidade política ser um dos elementos estruturantes da identidade pessoal, como alguns estudos parecem apontar. A verdade é que as pessoas com algum interesse pelos destinos da comunidade, perante um político de uma orientação ideológica adversa, conseguem a proeza de, ao mesmo tempo, vê-lo bem de mais e de não o conseguir ver. Conseguem, de uma forma absolutamente penetrante, no seu entendimento, ver no actor político a pessoal moral – por norma, o mais rematado filho da mãe – que elas supõem que ele é. Ao mesmo tempo são incapazes de encontrar nele qualquer virtude política e sendo tanto mais incapazes quanto mais virtuoso ele é.

Percebe-se facilmente a cegueira para a virtude política. Ela contraria o desejo da pessoa de ver os seus no lugar do poder. Reconhecer essa virtude significaria admitir que não se tem uma razão absoluta, que as suas crenças são frágeis e que há soluções exequíveis para além daquelas com que se identifica. O seu sistema de crenças sobre o destino da sociedade ficaria abalado. Interessante, porém, é observar aquilo que se exige, do ponto de vista moral, a um político adversário. Pessoas absolutamente venais ou de relativa perfeição moral, e estas são a esmagadora maioria, avaliam moralmente, com a sua supervisão, um político adversário por uma bitola moral que nem os santos, aqueles que conquistam a glória dos altares, conseguiriam satisfazer. Chegam mesmo a dizer que não conhecem o indivíduo, mas o seu carácter é abjecto e a sua pessoa, no mínimo, nojenta.

O que é interessante nisto não é a confirmação da tese de Jason Brennan de que as pessoas que se interessam por política, na sua esmagadora maioria, são hooligans. A expressão não precisa de explicação adicional. Interessante é compreender o potencial de intolerância que habita as pessoas, mesmo gente cordata e inofensiva noutras circunstâncias. A cegueira para a virtude política de alguém que não pertence ao nosso lado é uma negação da realidade. Contudo, essa cegueira precisa de um imaginário excesso de visão. E é este que mostra a abjecção – uma abjecção construída, claro – moral daquele que se despreza. O ataque ao carácter é a expressão de um desejo profundo de aniquilamento do político inimigo (inimigo, no coração; adversário, nas palavras). Na verdade, é um assassinato simbólico o que se pretende realizar. As paixões políticas não são inocentes e, caso não haja duras regras de contenção, elas têm um potencial de violência desmedido.

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