quarta-feira, 15 de maio de 2024

Poemas fluviais 2

Georgia O'keeffe, East river from The Shelton, 1928

No furúnculo da luz, na leve sede da melancolia,

existe um rio esquivo, peixes perdidos

no lodo, a coincidência da terra e da água,

mundos de erva erguidos no patíbulo do esquecimento.

Barcos navegam sob a sombra das ramagens,

cavaleiros sem nome, presos à caruma das horas,

ao aroma de cinza de um Verão de palmeiras.

 

Quando um rio é navegável, a cabeça dos homens

floresce entre o pano, o linho suado,

o triunfo da ardósia solta pelo fervor da ramagem.

Um rio negro, a chama atiçada na alma,

estende os dedos sobre os varais do carro,

devora os canaviais, a vida posta sobre a morte.

 

Rãs soltam-se, erguem castelos na água.

Um peixe voraz assola a cortina da face,

o vestido vermelho das raparigas de domingo.

Na cave deste rio existem pontes,

uma margem estreita sulcada pelas conchas

daquelas mãos soltas e desertas,

presas ao vazio de palavras despovoadas de som.

 

O rio sobe pela cicatriz orgânica, toca-o a lava

rasgada no rosto, ergue-o um sabor de cianeto

enrolado na ambrósia do tempo. Em inúmeras vozes,

abre-se o rio à palavra, ao labirinto de sangue e sílabas,

corroendo as veias, as artérias caiadas no barro,

a poeira fundeada na inóspita caverna da Primavera.

 

Maio de 1993

[Conjunto de cinco poemas pertencentes à série Cânticos da Terra Amarela]

segunda-feira, 13 de maio de 2024

Fritz von Unruh, O Caminho do Sacrifício

Fritz von Unruh (1895-1970) pertencia a uma família da alta nobreza prussiana, ligada ao mundo militar. Filho de um general, também ele enveredou pela carreira das armas, que abandonou em 1911, para se dedicar à literatura, mas à qual regressou em 1914 com o desencadear da primeira grande guerra. O romance O Caminho do Sacrifício começa por ser uma obra encomendada pela hierarquia militar alemã, para exaltar o espírito heróico alemão numa crónica da batalha de Verdun, onde o autor participa. O romance tem duas versões, uma primeira, ainda no espírito da exaltação patriótica, e uma segunda, a definitiva publicada em 1919, portanto, já depois da guerra acabar. Esta versão é o resultado da evolução do autor, a partir de 1916, em direcção ao pacifismo, influenciado pelo espectáculo de uma guerra onde o combatente perde a sua individualidade e se funde na massa que se afoga no sangue provocado pelo desencontro entre o poder técnico das novas armas e as concepções estratégicas tradicionais. Em vez da exaltação patriótica das virtudes militares, está-se perante uma viagem para o calvário, para o lugar do sacrifício, embora sem que se percebe para que fins salvíficos servirá a expiação daqueles homens.

A orientação expressionista do romance afasta-o das visões realistas de muitos romances focados na primeira grande guerra. O pathos linguístico é uma estratégia – não poucas vezes lírica – para tornar manifesto o absurdo em que aqueles homens vivem. A obra está dividida em quatro partes: (1) A aproximação; (2) As trincheiras; (3) O assalto; (4) O sacrifício. Esta composição sugere uma tragédia em quatro actos, nos quais se assiste não apenas à aproximação e chegada ao centro do combate, mas também à metamorfoses da consciência dos combatentes. O romance desenha um caminho que vai desde o fervor patriótico que conduz os homens para a guerra até ao confronto com a morte e a ausência de significado dessa morte. É plausível pensar que essa metamorfose das consciências seja a do próprio autor, o seu caminho de militar patriótico que retorna ao serviço para ir combater, isto é, servir os desígnios da nação, até ao pacifista em que se torna, perante a experiência absurda da batalha de Verdun.

Na primeira parte, A aproximação, é possível ler o discurso de um capitão para um voluntário: À saúde de todos os voluntários! Tive sob o meu comando uma companhia de estudantes. A flor da juventude foi arrastada pela gloriosa tempestade do povo, como uma explosão de júbilo primaveril. Quando o nosso canto se extinguiu, os campos resplendiam de brancura e claridade. Enterrámos belos corpos. Mas sentíamos: o fruto maduro há-de vir um dia. Será grande a colheita! A poeticidade com que a morte é descrita, apesar da ironia que nela já se faz sentir, culmina com a expectativa de uma grande colheita, como se os mortos fossem sementes que, ao morrer, se multiplicariam sem fim. Ou quando um dos militares escreve para a mulher: Sabes o que este mar significa para o combatente? A ofensiva, pressentimo-la; mas e para lá da procela? Minha querida, adivinhas o que me atrai lá longe sob o sol benfazejo? Tu sabes. Oh, pudesse eu antes beijar a penugem dourada do meu bebé! A liberdade por que lutamos, há-de ele respirá-la. Deus abençoe o teu corpo; se for rapaz, cria-o livre e justo. Também aqui se desenha um princípio de esperança, a crença que haverá um além da guerra e uma a justiça que esta, supostamente, trará consigo.

A obra conta a história de um grupo de militares que são figuras arquetípicas de todos aqueles que fazem o caminho da retaguarda para a frente. A esperança move-os. O decorrer da acção, a chegada ao lugar de combate vai desligar a conexão ideológica entre esperança e guerra. A esperança inicial torna-se, na parte final, a constatação de que toda a guerra é um exercício niilista e não o lugar onde se manifesta o valor supremo da heroicidade: Quando a manhã pôs a nu o horror do campo de batalha, Fips ergueu-se do seu buraco de granada e mediu com o olhar a imensidade da mutilação: «Salvo o devido respeito pelos nossos veneráveis ideais, pergunto: porquê? Primeiro a aproximação furtiva, depois um alarido extraordinário e - passado tudo isso - que ficou? Praticamente nada, além de uma assembleia muda onde já ninguém tem voz. Porque tombastes? Por Verdun? Permiti-me então que vos faça uma declaração póstuma: teria preferido que Verdun caísse e não vós!» A ironia é agora tenebrosa, nela não existe qualquer esperança, nem se vê naqueles mortos a semente de uma grande colheita, nem são pintados como paladinos da liberdade. São apenas mortos que perderam a voz numa assembleia muda.

Fritz von Unruh rompe, no seu romance, com o elo entre o sacrifício e a salvação. Fá-lo recorrendo a estratégias narrativas diversas, pondo na boca das personagens discursos que vão do lirismo poético à reflexão filosofante, por vezes, raiando a mística. Esta combinação discursiva de poesia, filosofia e mística é o operador que permite dar a ver a guerra na sua crueza, que a mostra não como uma grande cerimónia religiosa de superação de si e de salvação, mas o exercício de potências maléficas que se manifestam na ausência de sentido daqueles actos que levam a morte a inimigos que, na verdade, nunca fizeram mal a quem os combate. O horizonte do sacrifício na guerra, naquela guerra em particular, é a expiação de um mal de que se desconhece a real origem, pura perdição do corpo entrega à morte e da alma que perdeu a capacidade de encontrar sentido entre aquilo que não o tinha. 

sábado, 11 de maio de 2024

Nocturnos 118

Jonas Umbach, Nächtliche Szene in zwei Grotten mit antiken Sarkophagen

A noite é uma gruta onde a morte se abriga para meditar sobre a sua tarefa sem fim. Esconde-se do júbilo da vida e tece as armadilhas que, incansável, lança no caminho daqueles que foram trazido à existência e deverão retornar, cedo ou tarde, a esse lugar de onde, incógnitos, partiram.

quinta-feira, 9 de maio de 2024

O progresso moral da humanidade (17)

Max Beckmann, The Martyrdom, 1919

Não é preciso largar, num qualquer coliseu, alguém às feras, basta que caia no poço sem fundo do ressentimento da massa, no ódio que se fortalece pelo número dos que se juntam para o grande festim do mal. A praça pública é sempre uma arena em potência, onde, desprevenida, a vítima sacrificial é apanhada pela fúria da multidão, que se alimenta do espectáculo da dor, do prazer da agonia. A frágil pele da conduta civilizada depressa se rasga e, como um véu que se abre, oferece aos olhos do espectador incauto o tenebroso teatro que se esconde na melancolia dos dias pacíficos.

terça-feira, 7 de maio de 2024

Ensaio sobre a luz (117)

Edward Hopper, Squam Light, 1912
Metamorfoses da luz criam paisagens sonâmbulos perante olhos em êxtase. Onde se pensa a solidez da matéria, onde se crê a constâncias das coisas, apenas existe um jogo de cores, um texto de ondas luminosas, ordenado segundo uma sintaxe esquiva, a criação de sentidos pela ordenação das letras de um alfabeto nascido na declinação da luz solar.

domingo, 5 de maio de 2024

Poemas fluviais 1

Domenico Quaglio, The Younger, View of Frankfurt/Main, 1831

Na cidade, um rio de náuseas,

orquestra de rãs, flores aquáticas,

jardim de sombra na luz do coração.

Pulula nas águas

uma geração fortuita e sem dinastia,

uma geração de água colorida,

presa na sede de um vinho fatal.

 

Era um mundo de barcos e âncoras,

uma saraivada de remos

rompia a superfície das águas.

Navegavam homens inexoráveis,

roídos pelo despeito,

a dor da vida exígua,

o enjoo célere da idade.

 

Pende o rio sob o coração aprazado,

a ânsia do astro,

aberto e cru, ferido no peito.

Um esgoto ébrio, a céu aberto,

inunda as casas na brancura do dia,

a memória dessas casas,

as janelas pardas de cinza e poeira.

 

Nos dias do equinócio,

vinha o curso tenso do rio

desempatar o dia e a noite,

abrir a clareira do mundo,

eterna revolução de luz e trevas.

 

É um rio equinocial,

preso na órbita elíptica da terra.

Perante o suor do homem,

arvora a água escura,

peixes com travo químico,

o olhar de hidrogénio adormecido,

promessas de mercúrio

erguidas na novidade mortal.

 

Rio de letras, sílabas desaguadas

ferem o coração da mão que escreve.

Rio desamparado,

caído do braço armado do livro.

Rio sem margens,

suspenso do voo do corvo,

sem choupos, sem salgueiros,

sem o verde dos campos no horizonte.

 

Rio animal que se prende

à luz desta língua e sobrevive,

abre-se à voragem

da noite suspensa sobre a cabeça.

É um cutelo abrindo a paisagem,

desbrava a cal e a pedra.

Adormece na seda do estuário.

 

Abril de 1993

[Conjunto de cinco poemas pertencentes à série Cânticos da Terra Amarela]

sexta-feira, 3 de maio de 2024

25 de Abril e 25 de Novembro

 

Por que razão a França só comemora o 14 de Julho, o início da Revolução Francesa, e não o 27 ou 28 de Julho? O que aconteceu a 27 ou 28 de Julho de tão importante? A 27 de Julho de 1794, Maximilien Robespierre foi preso e a 28, sem julgamento, foi executado. A França libertava-se do regime do Terror, um regime sangrento, onde muitos milhares de franceses (talvez entre 16 mil e 40 mil) foram guilhotinados. Os franceses, porém, não vêem a libertação no fim da deriva extremista da Revolução Francesa, mas no seu dia inaugural. Ora, em Portugal, sítio onde nada de semelhante se viveu, parece que uma parte das elites políticas de direita precisa do aconchego do 25 de Novembro para engolir a pílula amarga do 25 de Abril. Por que será?

Em França, tanto os jacobinos de Robespierre (os radicais) como os girondinos (os moderados) estiveram do lado da Revolução. Ambos se reconheciam no 14 de Julho. Em Portugal, em 1974, as coisas não foram assim. Com honrosas excepções, como as de Nuno Rodrigues dos Santos, Francisco Sá Carneiro, Francisco Pinto Balsemão e mais uns quantos velhos republicanos e ex-deputados da ala liberal da Assembleia Nacional ou, mais atrás, figuras como Cunha Leal, Jaime Cortesão, Azevedo Gomes e, por certo, Norton de Matos e Humberto Delgado, toda a direita estava com o regime caído a 25 de Abril. Não houve uma tradição consistente da direita democrática em oposição à ditadura. Quando se dá o 25 de Abril, a oposição era quase toda (mas não toda) de esquerda (com vários matizes), não havendo uma direita democrática organizada.


Parte da direita não se reconhece no 25 de Abril, não por causa da deriva revolucionária e do gonçalvismo, mas por aquilo que a data representa: o fim da ditadura e a abertura do caminho para uma autêntica democracia representativa. O 25 de Novembro é usado para tapar a grande decepção que foi o fim do regime do Estado Novo. O mais estranho é que mesmo o 25 de Novembro foi arquitectado e dirigido por militares e políticos de esquerda, a começar por Mário Soares e a acabar no General Costa Gomes, para não falar em Vasco Lourenço ou Melo Antunes. O 25 de Novembro teve dois derrotados. A extrema-esquerda militar e civil, mas também a extrema-direita que queria aproveitar o momento para ilegalizar o PCP e outros partidos à esquerda do PCP. O 25 de Novembro não pôs fim a nenhum regime de Terror nem a nenhuma ditadura, que não existiam. Serviu para baixar a elevada tensão política no país, eliminar a influência esquerdista nos militares e pôr ordem nos quartéis. Foi uma correcção e um ajustamento, não uma libertação. Dia da libertação só há um, o 25 de Abril e mais nenhum. 

quarta-feira, 1 de maio de 2024

A clivagem política de hoje

 

Durante muito tempo a clivagem política nas democracias opunha a direita e a esquerda, em que a primeira combinava o conservadorismo nos costumes e o liberalismo na economia, enquanto a segunda era mais liberal nos costumes e mais interventora no domínio económico. Emergiu na Europa – e agora em Portugal – outra clivagem, a qual está a apagar a anterior. Não porque as diferenças entre direita e esquerda tenham desaparecido, mas porque estão a ser ultrapassadas por uma dicotomia muito mais dramática entre aqueles que defendem a democracia e os que a pretendem destruir como caminho para a instauração de um regime autoritário ou, pelo menos, de uma democracia iliberal, isto é, um regime que tem a aparência democrática, mas que subverte as regras da democracia.

A democracia liberal – ou democracia representativa – sempre teve inimigos, tanto à direita como à esquerda. As duas formas mais radicais de contestação da democracia – tanto à direita como à esquerda – coincidiam na negação das liberdades individuais, tanto políticas como civis. Vive-se, nos dias de hoje, um momento de ocaso das esquerdas iliberais e mesmo das esquerdas que, não rejeitando a democracia liberal, gostariam de a superar. A grande ameaça vem, actualmente, das direitas radicais e populistas. Estas, na sua retórica quotidiana, parecem – como é o caso português – estar em guerra com as esquerdas, mas isso é apenas uma máscara. Sabem perfeitamente que as esquerda não têm peso político substancial para ser alternativa de governo. Poderão ser um apoio a governos timidamente socialistas, mas não têm qualquer capacidade para impor uma agenda política que entre em conflito com a democracia liberal.

A retórica anticomunista e anti-socialista da direita radical e populista tem outros objectivos. Visa extremar a sociedade, dividindo-a em dois blocos inimigos, como passo decisivo para a atingir a sua meta, a destruição do regime democrático. O alvo é a democracia liberal e a cultura liberal. A grande divisão política, nos dias de hoje, é entre os que, à esquerda e à direita, defendem uma visão liberal e tolerante da política e da vida social, e aqueles que pretendem destruir essa visão, substituindo-a pelo autoritarismo político e por um feroz controlo social das vidas particulares. Em palavras mais simples, o jogo político trava-se entre os que defendem o regime democrático e aqueles que, aproveitando-se dele, trabalham a cada instante, através de uma falsificação continuada da realidade, para o destruir.

segunda-feira, 29 de abril de 2024

Simulacros e simulações (63)

Rui Sanches, sem título: desenho da série Excêntricos, 1986 (Gulbenkian)

Imagina-se um mapa em desintegração. Aquilo que estava unido e onde se podia ver um centro invisível, ganha vida própria e da simulação do espaço chega-se a um simulacro do caos.

domingo, 28 de abril de 2024

Comentários (19)

Georg Melchior Kraus, A Family at Table, 1770-1774

Arte que se desloca sobre a mesa
ao longo da toalha. Rigorosa
Nuno Guimarães

A arte será um deslocar-se por entre os interstícios do ser, a descoberta de fendas na grande toalha da aparência, o deixar que o advento daquilo que é surja na clareira onde pode ser visto. Não há outro rigor mais propício do que aquele que é dobado no ânsia da revelação, na busca de um caminho invisível que só se descobre quando se está nele, sempre sob a ameaça da perda e a esperança de trazer consigo aquilo que persiste para lá do espaço e do tempo e manifesta eternamente a sua imobilidade sob a aparência do instante e do incansável movimento. A arte é o deslocar-se sobre a mesa onde se depositam, com reverência, o pão nascido da terra e o vinho maturado pela luz solar. 

sexta-feira, 26 de abril de 2024

Beatitudes (68) Uma praia vazia

Armando Basto, Paisagem / Praia, 1920

Olhar a praia, as areias, ouvir o mar, sem que alguém se intrometa no campo visual ou arremesse o pesado dardo da voz. Então, pode-se caminhar pelo vazio meditando sobre o enigma do silêncio ou ficar sentado para contemplar o mistério do oceano.

quarta-feira, 24 de abril de 2024

Silvina Ocampo, A Promessa

 

A escritora argentina Silvina Ocampo (1903-1993) apenas escreveu um romance, A Promessa, que, aparentemente, deixou inacabado, tendo sido publicado postumamente. Começou a escrevê-lo em 1960, mas a certa altura a doença ter-se-á intrometido no projecto. A edição portuguesa, da responsabilidade da Antígona, data de 2023, com tradução de Helena Pitta. A obra é, em aparência, uma exploração da natureza fluida tanto da vida como da memória e é desencadeada por uma queda, essa situação mitológica que abre o horizonte onde se desenrola a vida e a morte. Trata-se de uma queda prosaica da narradora e protagonista, da qual não se sabe o nome e pouco da sua situação. No entanto, a essa queda corresponde uma salvação, da qual se suspeita a intermediária, mas não o modo. Quando se deslocava, num transatlântico, para a cidade do Cabo, para se reunir com a parte menos enfadonha da minha família, ao debruçar-se sobre a amurada do navio, caiu ao mar, sem que ninguém a visse. O livro é o resultado de uma promessa a Santa Rita, a das causas impossíveis: Não esqueci o pormenor desta atitude quando lhe fiz a promessa de, caso me salvasse, escrever este livro e de o terminar até ao dia do meu próximo aniversário.

O romance começa com o problema da narradora acerca da possibilidade de publicar o texto, interrogando-se sobre que editora o iria publicar. Isso só seria possível se acontecesse um milagre e ela acredita em milagres. Esta preocupação é o sinal de que o impossível tinha já acontecido. Apesar de ter caído ao mar sem que ninguém desse por isso, ela ali estava preocupada com a publicação e recorrendo mais uma vez aos serviços da Santa Rita. A inverosimilhança da situação narrada, a da salvação de alguém que cai em alto-mar sem que ninguém dê por isso, é contrabalançada com o recurso à intervenção milagrosa de uma santa que tem por missão advogar as causas perdidas. A promessa é o próprio livro, um livro muito especial, um dicionário de recordações às vezes vergonhosas, humilhantes. Não se pense, todavia, que se trata de uma confissão, pois a narradora não tem vida própria, apenas sentimentos: As minhas experiências não tiveram importância nem ao longo da vida nem sequer à beira da morte; a vida dos outros, pelo contrária, torna-se minha. Não é uma confissão, mas um relato de memórias de outros.

Perdida no oceano, vendo o navio a afastar-se, decide nadar e enquanto nada, para não se deixar atrair pelo canto de sereia da morte, deixa-se levar por um itinerário de recordações, uma modalidade de resistência ao sono, uma espécie de itinerário que, não sem ironia, também aconselho aos presos, aos doentes que não se conseguem mexer ou os desesperados à beira do suicídio. A memória é então uma modalidade de resistência à inacção e não há maior inacção do que a morte, morte que a cercava por todos os lados e que, segundo uma visão racional, seria mais do que certa. Existe uma confluência salvífica: a intercessão de Santa Rita e o continuado exercício da reminiscência. Essa memória, plasmando a nossa corrente de consciência, é feita de diversas narrativas, algumas mais complexas e com trama romanesca, outras como meros apontamentos, histórias incoadas, mas que não se desenvolvem. Assim, como nos repetimos, também a memória da nadadora à beira da morte se repete, mas ao repetir-se altera ligeiramente o que tinha contado. Um dicionário de recordações, com algumas entradas quase iguais a outras, mas que todas elas poderiam dar lugar a um exercício narrativo mais amplo e complexo, contos, novelas e romances, o que estaria, porém, em contradição com a situação presente daquela que se entrega a essas recordações.

A sucessão de recordações e a luta da protagonista pela vida, que se mistura na narrativa memorial, permitem pensar na relação entre duas instâncias temporais, o passado e o presente. O presente é vivido no fio da navalha, sempre sob a ameaça de haver um corte que impedirá que o futuro se torne presente. O que permite resistir à morte é a reminiscência do passado. O presente é sempre um buraco vazio e precisa de ser preenchido pelos produtos da memória ou da expectativa. Numa situação de morte iminente, a expectativa de um futuro parece impossível e o que pode alimentar e dá combustível à luta do presente é o material proveniente do fundo da memória. A questão, porém, é um pouco mais complexa, pois aquilo que está em jogo não é a aventura vivida no oceano, mas a aventura de escrever e publicar o livro prometido a Santa Rita. Sou analfabeta. Como conseguiria publicar este texto? Que editora o receberia? Creio que seria impossível, a menos que acontecesse um milagre. Acredito em milagres. O perigo não é morrer afogada, desse, de modo inexplicado, ter-se-á livrado, mas o de cumprir a promessa feita a santa Rita, isto é, escrever e publicar o livro.

O que se revela, então, na ficção de Silvina Ocampo é uma analogia entre lutar pela vida em alto-mar e o trabalho de escrever. A arte literária – toda a arte, porventura – é o resultado de uma queda do artista. A escrita é o exercício de natação que o mantém à tona de água e é alimentado pela memória, pelas histórias acumuladas que são um penhor de salvação. O romance é uma meditação sobre a arte romanesca, na qual todo o artista é, em última instância, um analfabeto que tem de recorrer, através de uma promessa, à intercessão de uma santa das causas impossíveis, para que a obra seja realizada e aceite. Toda a obra de arte é uma causa impossível que se tornou possível pelo milagre. Só se torna artista aquele que acredita em milagres, no milagre da sua própria arte que se consuma na obra realizada. Há, no romance de Ocampo, uma fenomenologia da arte literária marcada por três instâncias. A da queda no desejo de criar (em analogia com a queda da amurada do navio), a da promessa que marca o compromisso de escrever (o exercício de natação em alto-mar) e a do milagre da realização da obra (a salvação da morte iminente). São cem páginas de um inteligente jogo de analogias.

segunda-feira, 22 de abril de 2024

XIVa Coloana fará sfârsit

Artur Bual, Hoje VI, 1965 (Gulbenkian)

querer que morte e vida se apaguem

e o tempo de tão rápido se cale

nada é verdadeiro só imagem

onde o bem vejo sei oculto o mal

 

voa para longe da terra

o verbo que tudo encerra


[Quinze poemas sob música de György Ligeti, 2007]

sábado, 20 de abril de 2024

Família tradicional e luta do bem contra o mal

 

A publicação do livro Identidade e FamíliaEntre a Consistência da Tradição e os Desafios da Modernidade, apresentado por Passos Coelho, gerou uma inusitada efervescência, o que foi uma vitória para os organizadores desta obra colectiva. As leituras críticas incidiram na ordem política e na ordem dos costumes. Na primeira, o detonador foi a pessoa escolhida para a apresentação e também o que ela disse. Na segunda, foram as considerações feitas sobre a chamada família tradicional e o papel da mulher. Neste caso, são relevantes as intervenções de Paulo Otero, um dos coordenadores e também autor de um dos textos. Vale a pena comentar dois excertos da Introdução, um texto dos coordenadores que dá sentido ao conjunto publicado.

A dado passo diz-se: “De todas as sociedades humanas, a família é a única natural, universal e intemporal. Nasceu com o Homem e existe antes do Estado. Não foi criada cientificamente, não resulta de um qualquer legado jurídico, não foi imposta por acto administrativo, não germinou fruto de uma qualquer ideologia, não é o resultado de meras circunstâncias ou contingências históricas.” O interessante não é o que se diz, mas o que se oculta. Esconde-se que, na História da humanidade, a família nem sempre significou a mesma coisa. Esconde-se que em diferentes espaços culturais de hoje existem diferentes tipos de famílias tradicionais, que não se confundem com as famílias tradicionais que os autores defendem. Negam, por outro lado, uma evidência: qualquer forma de família é um produto cultural e não apenas uma emanação uniforme da natureza, como qualquer antropólogo lhes explicaria. Os autores partem de uma falsificação da realidade e não de uma análise credível da família.

A segunda citação revela o perigo que se esconde neste discurso: “Lutar (sic) pelo bem deixou há muito de constituir notícia, não dá audiências, nem abre noticiários. Já o mal sequestrou a sociedade que o consome em doses crescentemente acrescidas”. Estamos perante uma visão maniqueísta da realidade social e moral. Os autores estão do lado do bem, são os seus representantes, enquanto os que pensam de outro modo estão do lado do mal de cuja realidade não parecem duvidar. Esta visão, religiosamente herética (substancializa o mal e não o vê como privação de bem), tem uma terrível tradução política. Deixa de haver adversários políticos, mas inimigos, aos quais, em nome do bem supremo que se representa, se pode fazer o que se entender. Estes católicos tradicionais têm uma visão da família, da sociedade e do mundo moral muito tradicional, mas muito pouco caritativa, isto é, muito pouco católica.

quinta-feira, 18 de abril de 2024

Nocturnos 117

Antoni Guansé Brea, Nocturne, 1992

Noite a transbordar de noites, um delírio de veludos escurecidos  e de sedas obscurecidas pelo trânsito inquieto da Lua. Nada resplandece na púrpura da escuridão. No céu, as estrelas apagaram-se e nenhum sol veio dardejar no horizonte. Eis a hora rude onde a vida em delírio entra no alvéolo do abismo.

terça-feira, 16 de abril de 2024

Comentários (18)

João Queiroz, sem título, 2004

esferas dentro de esferas
- nada se via
escurecido tudo vermelho
Manuel Rodrigues

Suspende-se a radiação dentro das esferas, a luz coagulada não se desloca e, se olhos houver, ela não os tocará e serão cegos. A cegueira é um ofício feito de recusas, um suspiro que se deixa cair, a arte de quem, suspensa a visão, se entrega ao mar vermelho onde tudo se torna indistinto. Dentro das esferas, outras esferas transportam nelas essa cegueira vivaz, feita de ausência de radiações e de olhos imóveis, impotentes para desbravarem o caminho que os levará ao ponto onde a luz ficou retida, numa condensação inquietante, numa recusa de brancura, numa prisão escurecida pelo infinito fulgor do vermelho.

domingo, 14 de abril de 2024

Beatitudes (67) Vida mediana

Edward Arning, Aufnahmen von Dr. Ed. Arning in Hamburg, 1901

A felicidade será o resultado de um exercício de pequenas coisas. Nada de grandes gestos, nem grandes palavras, tão pouco escandalosas omissões. Basta sentar-se e folhear uma revista ou um jornal, talvez um livro. Trocar as paixões por uma calma quase contemplativa, deixar que as coisas que nos rodeiam floresçam lentamente sem os nossos imperativos. Aprender a lidar com o tempo como se lida com um rio de águas traiçoeiras. Ali, nessa vida mediana, um contentamento nasce e afirma-se pois onde não existe a inclinação para a grandeza também não há lugar para grandes decepções, e nada torna mais infeliz uma pessoa do que as grandes decepções.

sexta-feira, 12 de abril de 2024

Ensaio sobre a luz (116)

Mário de Oliveira, Paisagem de Castela III, 1966 (Gulbenkian)

Exposta à inclemência da luz, a terra, como uma virgem eterna, seca lentamente. Desenham-se rugas, as cores juvenis fenecem impiedosamente e a vida esvai-se na ausência de uma sombra revigorante. Em toda a luz se esconde um ponto negro e mortal.

quarta-feira, 10 de abril de 2024

XIV Coloana infinita

William Turner, Sun Rising Through Vapor, Fisherman Cleaning and Selling Fish, 1807

se o sol entre nuvens já desponta

espelho onde todos se remiram

cansada esvoaça a ave tonta

pois da árvore a frágil casa tiram

 

tudo é pequeno e sem fim

           grande só a morte em mim 

[Quinze poemas sob música de György Ligeti, 2007]

segunda-feira, 8 de abril de 2024

Simulacros e simulações (62)

Fernando Calhau, sem título #481, 1980 (Gulbenkian)

O olhar indeciso suspende-se sobre a maré de carvão grafitada na brancura da página. O coração hesita, os olhos confessam não saber se, na ondulação simulada, se vê a agitação do mar ou o devaneio de uma seara soprada pelo vento. Só a escuta abre o corpo para o simulacro do caos que transpira sob a ordem apolínea inventada pelo desejo do coração, pela gramática do olhar.