quinta-feira, 18 de abril de 2024

Nocturnos 117

Antoni Guansé Brea, Nocturne, 1992

Noite a transbordar de noites, um delírio de veludos escurecidos  e de sedas obscurecidas pelo trânsito inquieto da Lua. Nada resplandece na púrpura da escuridão. No céu, as estrelas apagaram-se e nenhum sol veio dardejar no horizonte. Eis a hora rude onde a vida em delírio entra no alvéolo do abismo.

terça-feira, 16 de abril de 2024

Comentários (18)

João Queiroz, sem título, 2004

esferas dentro de esferas
- nada se via
escurecido tudo vermelho
Manuel Rodrigues

Suspende-se a radiação dentro das esferas, a luz coagulada não se desloca e, se olhos houver, ela não os tocará e serão cegos. A cegueira é um ofício feito de recusas, um suspiro que se deixa cair, a arte de quem, suspensa a visão, se entrega ao mar vermelho onde tudo se torna indistinto. Dentro das esferas, outras esferas transportam nelas essa cegueira vivaz, feita de ausência de radiações e de olhos imóveis, impotentes para desbravarem o caminho que os levará ao ponto onde a luz ficou retida, numa condensação inquietante, numa recusa de brancura, numa prisão escurecida pelo infinito fulgor do vermelho.

domingo, 14 de abril de 2024

Beatitudes (67) Vida mediana

Edward Arning, Aufnahmen von Dr. Ed. Arning in Hamburg, 1901

A felicidade será o resultado de um exercício de pequenas coisas. Nada de grandes gestos, nem grandes palavras, tão pouco escandalosas omissões. Basta sentar-se e folhear uma revista ou um jornal, talvez um livro. Trocar as paixões por uma calma quase contemplativa, deixar que as coisas que nos rodeiam floresçam lentamente sem os nossos imperativos. Aprender a lidar com o tempo como se lida com um rio de águas traiçoeiras. Ali, nessa vida mediana, um contentamento nasce e afirma-se pois onde não existe a inclinação para a grandeza também não há lugar para grandes decepções, e nada torna mais infeliz uma pessoa do que as grandes decepções.

sexta-feira, 12 de abril de 2024

Ensaio sobre a luz (116)

Mário de Oliveira, Paisagem de Castela III, 1966 (Gulbenkian)

Exposta à inclemência da luz, a terra, como uma virgem eterna, seca lentamente. Desenham-se rugas, as cores juvenis fenecem impiedosamente e a vida esvai-se na ausência de uma sombra revigorante. Em toda a luz se esconde um ponto negro e mortal.

quarta-feira, 10 de abril de 2024

XIV Coloana infinita

William Turner, Sun Rising Through Vapor, Fisherman Cleaning and Selling Fish, 1807

se o sol entre nuvens já desponta

espelho onde todos se remiram

cansada esvoaça a ave tonta

pois da árvore a frágil casa tiram

 

tudo é pequeno e sem fim

           grande só a morte em mim 

[Quinze poemas sob música de György Ligeti, 2007]

segunda-feira, 8 de abril de 2024

Simulacros e simulações (62)

Fernando Calhau, sem título #481, 1980 (Gulbenkian)

O olhar indeciso suspende-se sobre a maré de carvão grafitada na brancura da página. O coração hesita, os olhos confessam não saber se, na ondulação simulada, se vê a agitação do mar ou o devaneio de uma seara soprada pelo vento. Só a escuta abre o corpo para o simulacro do caos que transpira sob a ordem apolínea inventada pelo desejo do coração, pela gramática do olhar.

sábado, 6 de abril de 2024

As eleições e o triunfo do pensamento mágico

 

Existe, em Portugal, uma franja pequena do eleitorado que quer, deliberadamente, destruir a democracia, não suporta os regimes liberais, sonha com o retorno ao autoritarismo. Ao votar Chega, fá-lo racionalmente. Contudo, a explosão do eleitorado do partido de André Ventura não se explica por esse tipo de eleitores. Têm sido adiantadas múltiplas explicações. Por norma, baseadas na suposta má conduta dos partidos do sistema (sic), o que teria gerado uma onda de insatisfação no eleitorado. A questão é mais funda. Que respostas têm estado disponíveis, do ponto de vista político, para a pergunta: como posso viver melhor? Por um lado, a resposta da esquerda tradicional: a luta colectiva, a solidariedade entre pessoas, gerará para cada uma essa vida melhor. Por outro, a da direita democrática tradicional: és livre, aposta em ti, a vida melhor depende do teu mérito. As duas respostas estão assentes na acção e no esforço.

A votação no Chega é a derrota destas duas respostas. Os insatisfeitos não apreciam o esforço das lutas colectivas, nem reconhecem que a sua situação esteja ligada ao seu mérito ou à falta dele. Crêem que a sua situação se deve aos políticos tradicionais, que são diabolizados. Está-se já no campo do pensamento mágico. A solução da minha insatisfação está, não no esforço colectivo ou individual, mas em alguém, o líder carismático, que virá salvar-me da situação em que me encontro. A partir da crença num líder salvador, o pensamento mágico reforça-se no encantamento dos slogans simplistas (Limpar Portugal), na negação da realidade – isto é, dos factos que negam a narrativa do líder – e no desenvolvimento de expectativas irreais de que problemas altamente complexos se podem resolver facilmente, bastando as palavras mágicas do salvador.

Os partidos tradicionais irão ter muita dificuldade em lidar com a nova situação. O pensamento mágico dificilmente é derrotado pelo discurso sensato e pela acção razoável. Os problemas que enfrentamos exigem esforço e racionalidade, coisa para a qual parte do eleitorado não está disponível. O pensamento mágico não exige esforço nem reflexão, vive de emoções, alimenta-se de mitos e slogans, propaga-se por contágio, como uma epidemia. Havendo uma liderança carismática, por norma, o pensamento mágico tende a aumentar e só perde força depois de uma desgraça. São tantos os exemplos – vindos da direita e da esquerda – em que o pensamento mágico dos cidadãos conduziu a uma tragédia que nem vale a pena enumerá-los. A democracia liberal, aquela que em Portugal nasceu há 50 anos, está perante um grande e grave problema.


quinta-feira, 4 de abril de 2024

A persistência da memória (29)

Theodor and Oskar Hofmeister, Am Feuerherd - Vierlande, 1903

Os gestos ligados ao fogo e à confecção dos alimentos são uma memória arcaica, trazem com eles um texto de fácil decifração, pois estão escritos num alfabeto universal que compõe um léxico que ainda hoje é reconhecido e que é estruturado por uma gramática luminosa. Imaginamos facilmente, extasiados pelas transformações do mundo material, que nos afastámos desse mundo antigo ou mesmo daquele que era o dos nossos avós, mas essa imaginação é ilusória e não resiste a uma imagem, simples que seja, de alguém cuidando do fogo para que a mesa esteja repleta e a vida possa continuar incólume o seu curso.

terça-feira, 2 de abril de 2024

O ocaso do espírito liberal

Assistimos a uma grave crise do espírito liberal. É de temer a sua morte. Podemos esboçar um retrato do espírito liberal com cinco características. Em primeiro lugar, a liberdade individual de cada um agir segundo a sua consciência, desde que isso não interfira na liberdade dos outros. Em segundo lugar, a igualdade de direitos, independentemente de qualquer característica diferenciadora (raça, sexo, religião, etc.). Uma outra característica é a tolerância, o propósito de respeitar as diferenças, sejam elas de crenças ou de comportamentos. Uma quarta característica é a racionalidade, a ideia de que a verdade pode ser obtida através do uso da razão. Por fim, o progresso baseado no conhecimento, que permitirá melhorar a sociedade através de reformas racionais.

Pessoas de diversas orientações políticas, desde que defendam as características acima enunciadas, possuem e participam no espírito liberal. Apesar de podermos encontrar alguns traços desse espírito na pólis grega, o espírito liberal, tal como ainda o conhecemos, tem o seu advento no Iluminismo e na constituição de uma esfera pública burguesa em confronto com o Absolutismo. Era, claro, apanágio de uma minoria ilustrada, preocupada em substituir as relações sociais baseadas na violência por outras fundadas no diálogo tolerante e racional, o qual, supunha-se, geraria as melhores soluções para os problemas dos indivíduos e das sociedades. Acreditava-se – e talvez ainda exista quem acredite – que a educação iria alargar paulatinamente a participação nessa esfera pública racional e que o espírito liberal se estenderia a toda a sociedade.

A evolução política do Ocidente – o fenómeno Trump nos EUA, o crescimento da extrema-direita na Europa, em Portugal, do Chega – mostra que esse espírito de tolerância, liberdade e racionalidade está muito doente. Talvez seja vítima do seu próprio triunfo e também das suas ilusões. O liberalismo, enquanto tornava todos iguais em direitos, acentuava, na economia, grandes diferenças de rendimentos, o que fomenta reacções contra esse espírito. O triunfo do chamado neoliberalismo está a matar o espírito liberal. Por outro lado, a crença de que a educação da população iria alargar o espírito liberal a toda a sociedade parece ser uma ilusão, a qual se torna patente quando se olha a intervenção das pessoas nas redes sociais. O que impera hoje é o espírito de facção e não a tolerância, o pensamento mágico e não a racionalidade, a discriminação e não a igualdade de direitos, a desarticulação das instituições e não a reforma progressiva, o uso da liberdade para a liquidar. O espírito liberal parece viver um doloroso ocaso.

domingo, 31 de março de 2024

XIII L’escalier du diable

Julião Sarmento, The house with upstairs in it, 1996

infinito o dia negro ascende

da vida luminosa ao inferno

com rudes mãos a alma se te prende

na morte ao incêndio do Inverno

 

em dissonância sonora

noite pela terra fora


[Quinze poemas sob música de György Ligeti, 2007]

sexta-feira, 29 de março de 2024

Meditações melancólicas (93) Melancolia rural

Friedrich Christian Reinermann, Aldeia nas montanhas junto a um riacho

Não serão muito aqueles que não trazem em si uma estranha melancolia proveniente de um sentimento de amor ao mundo rural. Cristalizou-se na imagem desse mundo a pureza das coisas inocentes e a perfeição daquilo que permanece perto do ardor da terra. Muitas daqueles que sofrem dessa estranha patologia, pois de patologia se trata, nunca viveram ou, tão pouco, tiveram contacto com esse universo que o tempo aniquilou. Serão, por certo memórias ancestrais que se construíram através de narrativas familiares ou de imagens que proliferam um pouco por todo o lado. Há quem se atreva a dizer que essa melancolia não é outra coisa senão um signo de uma saudade, a do paraíso perdido. E, de certo modo, terá razão, pois no cerne de toda a melancolia existe um sentimento de perda e um anseio de plenitude.

quarta-feira, 27 de março de 2024

Comentários (17)

Odilon Redon, O Buda, 1896

 Como se escutasse. Silêncio: distâncias belas...
Detemo-nos, deixando de as ouvir.
Rainer Maria Rilke

Um enigma envolve aquelas que deixamos de ouvir. Talvez sejam vozes femininas, as de uma mãe que chama por nós na terra precária da infância, as de um primeiro amor cujo rosto, então amado, ficou esquecido no desvão da adolescência, as de uma desconhecida que deixou pairar na atmosfera o timbre das suas palavras e o visco dos seus olhos. Todas essas vozes nos abandonaram, refugiaram-se na distância do passado, ainda assim belas no cerco da memória. Ou talvez não sejam vozes aquilo que pede a nossa escuta e exige o silêncio. Será um outro mundo no qual já não habitamos, aquele em que a Terra era centro do cosmos e em torno dela havia esferas etéreas incrustradas com estrelas fixas que rodopiavam na noite para nos iluminar o caminho. É a sua música que, na distância, nos chama ao silêncio e como budas nos detemos perante a sua voltear eterno à espera da iluminação.

segunda-feira, 25 de março de 2024

Nocturnos 116

Nuno Cera, Snapshots 4, 1997

Ouve-se os comboios ranger nos carris, enquanto a noite desce e enche de mistério a estação, esse lugar onde se espera a melancolia da partida ou se aguarda, no fulgor da alegria, quem chega. Tomados pelo véu nocturno, esses lugares inóspitos e insalubres metamorfoseiam-se e são o cenário de um conto de fadas ou o palco de um drama de amor. 

sábado, 23 de março de 2024

XII Entrelacs

Frédéric Bazille, Reclining Nude, 1864

as tranças que desfaço em teus cabelos

são moinhos de erva seca ao vento

enrolam-se nas mãos brancos novelos

se em ti meu corpo cai suave e lento

 

um sopro de luz e mágoa

           salta e dança na fria frágua 

[Quinze poemas sob música de György Ligeti, 2007]


quinta-feira, 21 de março de 2024

Ensaio sobre a luz (115)

Mário de Oliveira, Paisagem, 1973 (Gulbenkian)

Olha-se uma paisagem e fica-se perdido nos elementos que a compõem, as características geográficas do território, a peculiaridade da flora, a dimensão do relevo ou a sua ausência, a presença ou a falta de água. Nessa alienação no visível oblitera-se a essência da paisagem, a luz que a ilumina e a configura, que a põe disponível para o olhar e permite descobrir os seus enigmas e os segredos que a habitam.

terça-feira, 19 de março de 2024

Simulacros e simulações (61)

Maria Helena Vieira da Silva, Ermitages (Bleu Tressé), 1971 (Gulbenkian)

Simule-se a solidão, que ela venha pela véspera do rio ou pela aurora da lezíria. Dentro dela, há um nome a arder, palavras trançadas no azul da luz ou no vermelho da escuridão. Depois, erga-se uma casa de colmo e o solitário encontrará, no simulacro do abandono, o nome que lhe deram e o destino que trazia no fundo do coração ou a algibeira vazia onde tinha todos os haveres.

domingo, 17 de março de 2024

Beatitudes (66) Música da noite

Ernst Ludwig Kirchner, Accordion Player by Moonlight, 1924

Os sulcos da noite abrem-se à luz da Lua. Tudo o que dia manifesta, vinda a escuridão, transforma-se em segredo e enigma. Então, um homem senta-se na humidade do chão e das suas mãos sai uma música que sobe suavemente às esferas celestes. Tomadas pelo mistério da hora, as mulheres sentam-se extáticas e contemplam a invisível linha do horizonte, enquanto o luar e anoite entram pelos seus olhos e a música as invade, abrindo o coração para a alegria desmedida das noites eternas.

sexta-feira, 15 de março de 2024

A degradação da paisagem política

 

Não vale a pena comentar o caos em que as decisões de Marcelo Rebelo de Sousa lançaram o país. Também não vale a pena salientar que o nosso sistema semipresidencial é um problema, devido aos poderes arbitrários dos Presidentes da República. Vale a pena, porém, olhar para o país e para aquilo que estas eleições mostram. Em primeiro lugar, o tradicional centro político (CDS, PSD e PS), embora maioritário no país, já não chega aos 60%. Em 2022, os três partidos somados ultrapassavam ligeiramente os 70%. Uma radicalização que atingiu duramente os resultados do PS, mas que também paralisou o par CDS e PSD, que, como AD, têm mais ou menos a mesma percentagem de votos que em 2022. A rasura do centro é um preocupante sinal de degradação da vida democrática.

A paisagem política mudou radicalmente com os 18% do Chega. O seu crescimento exponencial é outro dado da radicalização do país. Não apenas por ser um partido populista, mas pelo facto de conseguir atrair o eleitorado não tendo qualquer consistência discursiva ou de atitude. Se compararmos o Chega com o Vox espanhol, percebemos de imediato uma diferença significativa. O partido espanhol é altamente estruturado, tanto do ponto de vista ideológico como do comportamento das suas lideranças. O partido português chega a uma votação significativa apenas fundado nas diatribes de André Ventura, no comportamento desrespeitoso perante os adversários políticos, as instituições democráticas da República e os grandes valores do 25 de Abril. Na prática, os eleitores não fazem ideia de quais são as políticas substantivas do Chega. Mesmo assim votam nele, como se houvesse um desejo de destruição, a começar na destruição do PSD – um dos objectivos de Ventura – e a seguir da democracia tal como a entendemos.

Outro sinal da radicalização da nossa sociedade é a erosão do Partido Comunista. É preciso compreender o papel central que este partido tem tido no equilíbrio do sistema político. Não tanto no jogo parlamentar, embora também aí tenha tido papel de relevo, mas no jogo social, onde o papel do PCP nos sindicatos tem sido central para evitar contestações anárquicas do regime e tem servido de escape aos sentimentos negativos que podem atingir parte da população. Neste momento, existem já movimentos de contestação inorgânicos, que não obedecem a qualquer racionalidade política, os quais são uma ameaça para a saúde da democracia. A erosão parlamentar do PCP e a do movimento sindical, que dificilmente será travada, é um outro sintoma de degradação da paisagem política no momento em que a transição à democracia faz 50 anos.

quarta-feira, 13 de março de 2024

XI En suspens

Stipo Pranyko, Cuadro com remo, 1998

murmúrios no vento andrajoso

suspendem-se ao tocar leves o chão

são palácios de gelo frio rugoso

mal os vejo na luz da outra mão

 

estrela no céu flutua


deusa breve branca e nua


[Quinze poemas sob música de György Ligeti, 2007]

segunda-feira, 11 de março de 2024

A tal maioria sociológica de direita

Umberto Boccioni, Agitate Crwod Surrouding a High Equestrian Monument, (1908) 
Um dos comentadores da SIC, daqueles que passam por independentes, dizia, não sem enlevo, que agora há no país uma maioria sociológica de direita. E isso justificará, por certo, que se realizem as políticas que ele, comentador, deseja. Contudo, há um erro fundamental na sua apreciação. Não existe qualquer maioria sociológica de direita. Existe, sim, uma maioria eleitoral de direita, uma maioria significativa, mas, como todas as maiorias eleitorais, meramente conjuntural. 

Imaginemos um programa como aquele que Passos Coelho tinha para a sua segunda legislatura, caso tivesse uma maioria no parlamento. Um programa que a Iniciativa Liberal, por certo, apoiaria com entusiasmo. O PSD e CDS apoiariam, mas com pouco entusiasmo. Imaginará o comentador da SIC que a maioria das pessoas que votaram no Chega suportaria esse tipo de política? Por certo haverá gente, entre os quadros recrutados na IL e na área da AD, que aplaudiria uma política dessas, mas a multidão votante do Chega, mal percebesse a realidade dessas políticas, logo se desligaria do partido de Ventura, caso este se decidisse apoiar aquilo com que o nosso comentador sonha. É pouco plausível que exista, no país, uma maioria sociológica disposta a apoiar os sonhos do que se convencionou chamar neoliberalismo.